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Sobre racismo e outras formas de preconceito no Brasil do século XXI


O potencial político da classe média para projetos reacionários e conservadores não é novidade para ninguém. Para não apelar de uma vez com exemplos como Hitler e os fascistas, prefiro um exemplo local: o apoio entusiasmado dessa classe média a 1964. Não é por alguma praga divina que o estado supostamente mais desenvolvido do Brasil produz uma longa estirpe de políticos reacionários [Ademar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf, etc] – a base política dessas peças é justamente a extensa classe média paulista.
O problema é que o país conhecido e reconhecido pela velha classe média brasileira, onde ficava cada macaco no seu galho e pé-de-chinelo nenhum se metia a besta, se despedaça aos poucos. O efeito mais perturbador e inquietante desse desmoronamento para o velho esteio do conservadorismo brasileiro é a pilha de escombros que oculta as fronteiras. Daí tanto ressentimento, temor e ódio pelos diferentes – mais porque afinal de contas eles não são suficientemente diferentes e vão se misturando, “sujando” os endereços elegantes antes só frequentados por “gente bonita”. 
A reação é a violência de sempre: o racismo brasileiro só é cordial quando a gentalha reconhece o seu lugar e não dá uma de besta. Agora a violência além da esfera policial, que podia ser apenas pontual “nos bons tempos”, quando era aplicado apenas aos poucos “pretos metidos” que não se conformavam em ser “pretos humildes”, vai se transformando em uma enxurrada de ofensas e xingamentos cada vez mais violentos e ofensivos. A ligação entre os trogloditas que ficavam ameaçando a UnB e pregando o estupro corretivo contra lésbicas na internet e o insano que matou um monte de meninas na escola de Realengo no Rio de Janeiro foi convenientemente ignorada pela "grande" imprensa, que é justamente o quintal dessa classe média. Ofensas racistas e sexistas são tratadas como “apenas uma piada” nesses meios de comunicação, que vociferam contra as cotas nas universidades públicas, qualificando-as de “segregação”. 
Resta ver a que ponto essa energia pode ser canalizada para projetos reacionários mais diretamente violentos. Comentando a explosão da violência nos Balcãs, Zygmun Bauman chamava a atenção para algo que ele não via como uma “peculiaridade balcânica”:

“A violência é necessária para tornas essas pessoas insuficientemente diferentes espetacularmente, inequivocamente, gritantemente diferentes. Então, aos destruí-las, podia-se ter a esperança de estar eliminando o agente poluidor que havia ofuscado as distinções, e assim recriar um mundo ordenado onde todos sabem quem são e as identidades deixaram de ser frágeis, vagas e instáveis.”

O direito de segregar no Brasil fica cada vez mais restrito ao seu 1% de janotas podres de rico e a velha classe média se desespera ao se ver descolada dessa dourada elite, convivendo com o resto do Brasil nos aeroportos, nas escolas particulares, nas universidades, etc. Haverá um catalizador político para toda essa agressividade acumulada?

Comments

José Roberto said…
Prezado Paulo,
Desculpe este longo texto mas existem alguns aspectos que merecem comentários e/ou contribuições:
1) Aprendemos que no Brasil o racismo é velado, não tem uma cara definida e não se mostra. Acho isto uma grande imbecilidade e a internet (local ideal para os covardes) desmascara esta verdade a todo momento. Vide o caso recente da judoca Rafaela Silva que foi agredida pelo Twitter com frases do tipo: “lugar de macaca é na jaula” e “você não é melhor do que ninguém porque você é negra”.
2) O racismo brasileiro que sempre foi muito identificado com o preconceito de raça e classe social, tem agora uma vertente muito forte que é a homofobia. Em 2011 foram documentados 266 assassinatos de homossexuais e este ano deve superar esta marca pois só nos primeiros meses do ano foram mais de 100 mortes. Importante dizer que os estados lideres na estatística de 2011 foram a Bahia (sexto ano de "liderança"), Pernambuco, São Paulo, Paraíba, Alagoas e Minas Gerais. Os nordestinos que sofrem tanto preconceito são líderes nesta triste estatística.
3) Concordo com sua análise sobre a classe média paulista mas como morador do Rio de Janeiro gostaria de citar alguns casos de racismo nesta cidade que tanto se orgulha da mistura de seu povo: a proibição dos bailes funks, a resistência dos moradores da Barra e da Zona Sul ao metrô ("Eles vão invadir nossa praia!"), os famigerados elevadores social e de serviço, a limpeza étnica nas escolas de samba, os locais VIP'S, a violência contra os viciados em crack, os muros acústicos separando a favela dos carros nas Linhas Vermelha e Amarela...
Parabéns por sempre levantar este assunto no Às moscas.
Abs
Obrigado pela contribuição, José Roberto. Sinta-se em casa! Esses incidentes da internet são reflexo das pessoas tomarem esse espaço [que é eminentemente público] como uma espécie de paraíso da irresponsabilidade pública. O sujeito se vê no direito de dizer qualquer tipo de asneira e depois se espanta com a repercussão ou então se esconde no anonimato para se mostrar. Eu acho tudo isso bom, porque muita gente decente se deixa enganar por essa história de racismo velado.

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