Skip to main content

Postal do Inferno e Poesia Minha: Hikikomoris e "O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente"

As fotos acima são de Hikikomoris, pessoas, geralmente jovens, que se internam em seu quarto e nunca saem de lá, comunicando-se com o mundo exterior apenas através da internet. Calcula-se que sejam centenas de milhares só no Japão.  
 
O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente


O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

O medo amargava o cabo da língua
quando os loucos de Barbacena descarnavam
dentro de barris cheios de ácido
que detalhavam indiferentes o podre do são
e os ossos abasteciam os mostruários
das escolas de medicina onde se aprendia
a autopsiar fugas e atropelamentos impossíveis. 

O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

Gostava dele quando eu fechava os olhos
e na língua sem palavras que trago comigo
era tudo um imenso domingo universal.
O calor em que o cão pendura a língua
segurava meu coração pelo rabo
na linha de resguardo,
mas não parava o tempo.

O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

Atrás de sorte e morte
as ruas fermentavam restos de urina e cerveja quente
mas o patrimônio específico dos corações inferiores
como o meu é o ressentimento,
canoão no seco, trem de doido,
pronto para me levar,
oco sem beiras,
para parar de ser
em Barbacena.

O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

A gente se acostuma com esse vendaval
e ouve o silêncio que existe em toda a solidão.
Cai o parasita, fica o tronco morto.
A seleção natural,
o equilíbrio das espécies:
a imagem do desconsolo,
o horror do mundo.

O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

Em nome de nada,
em nome de ninguém,
sem nenhum sonho,
sem ternura,
sem a paixão da piedade,
sem saudade,
com a fome que nasce
quando a boca está perto da comida,
como o poema e não o seu nome;
como o poema limpo do retorcido desejo humano,
existindo como é.

O poema desliza em si mesmo
como um cubo de gelo
numa chapa quente.

Eu sei.

 

Comments

Anonymous said…
Bonito. Eu gostei muito.
(tata)
Obrigado, Tata. Esse aí eu acho que está envelhecendo bem.

Popular posts from this blog

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia inst...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...