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O "sistema não-se-sabe" e os engraçadinhos

Noor Berham começou em 2007 a tirar fotografias depois de ataques com aviões não tripulados [drones] no Paquistão. Entre 2007 e 2014 ele documentou aproximadamente 100 locais que sofreram bombardeios desse tipo na província onde ele vive, o Waziristão do Norte. Logo que sabia da notícia de um novo ataque, Berham tentava chegar o mais rápido possível ao local do acontecimento e documentar tudo. Quando disseram a ele que se ele tirasse fotos de vítimas que fossem homens barbudos e cabeludos, mesmo que eles fossem verdureiros ou vendedores de pastel, suas imagens seriam usadas para apontar a morte de militantes muçulmanos perigosos, Berham decidiu centrar foco nas vítimas que fossem crianças.


Os drones não precisam de pilotos e por isso não precisam ser operados pela força aérea dos Estados Unidos. São responsabilidade da CIA, uma instituição que facilmente não precisa dar satisfação de nada a ninguém. Desde a primeira Guerra do Iraque que a mídia dos Estados Unidos [e por tabela seus repetidores pelo mundo afora] tentaram passar a impressão de que se poderia fazer uma guerra principalmente baseada em bombardeios, sem expor seus soldados aos perigos comuns do combate em terra e sem matar inocentes graças a precisão de "mísseis inteligentes" e coisas assim.

Num conto de Guimarães Rosa me lembro que o narrador se refere ao assassinato de um personagem em "sistema de não-se-sabe". Àquela altura os franceses [esses lindos paladinos da liberdade e da fraternidade mundiais] já tinham desenvolvido no Vietnã e na Argélia [ironicamente tomando duas surras no fim das contas] a ideia de uma guerra contra-revolucionária em que a população civil vira parte do conflito, em que não há mais nem fronteiras nem uniformes e a tortura e execuções sumárias são "estratégias de combate ao inimigo". Os militares argentinos convidaram os franceses para dar cursos, traduziram seus livros, estudaram tudo direitinho e acabaram desaparecendo 30.000 pessoas nos anos 70. Um de seus "simpáticos" expoentes, Ibérico Saint-Jean [cujo sobrinho é chefe de segurança do Walmart na Argentina, aliás] resumiu esse tipo de guerra total assim:


Primero mataremos a todos los subversivos; luego mataremos a los colaboradores; luego a los que permanezcan indiferentes. Y por ultimo, mataremos a los indecisos.”


No século XXI, com os drones, chegamos à guerra pelo sistema de não-se-sabe. Estão aí as fotos de Noor Behram que poderiam dissipar um pouco a cortina de fumaça. Numa recompensa típica do século XXI, Obama [em última instância o responsável pelos ataques] admitiu em 2013 que inocentes teriam sido mortos e que tais incidentes eram "heartbreaking tragedies". Pediu desculpas mas disse que os bombardeios continuam. 

Pobre Noor Behram, que com sua cara barbada e turbante na cabeça tem para muita gente por aí "cara de terrorista matador de cartunista francês." Imagem no século XXI é tudo. Até o normalmente sisudo Bibi Netanyahu resolveu embalar seu discurso paranóico em um humor engraçadinho e simpático numa campanha eleitoral de iutubio:



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