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Cinco pontos de reflexão sobre a gravação da vida

Arte minha: Auto-Retrato
1. A biografia é um gênero literário. Não basta ser fidedigno e fazer pesquisa. É preciso montar com os dados que se tem e as interpretações que se inventa um livro que conta a história da vida de alguém de um jeito que toca e provoca o leitor. Nesse sentido a biografia de Benjamin Moser da vida de Clarice Lispector é muitíssimo superior à biografia de Eduardo Jardim da vida de Mário de Andrade.

2. Uma autobiografia é sempre um livro incompleto pelo simples motivo de contar a história de uma vida que não chegou ao ser ponto final. Há apenas uma gloriosa exceção: o Brás Cubas de Machado de Assis.

3. Todo autor consagrado sofre com os amigos de sua obra. Nada pior do que virar santo/gênio. Nem virar monstro, como acontece com frequência em biografias escritas nos EUA. Como o biógrafo de Lou Reed, que chama o músico de "monstro" com base em detalhes sórdidos da vida pessoal do cantor. Mas as obras do santos do panteão literário tem tantas arestas como as obras do Zé Ninguém. E eles eram humanos como todos nós.

4.Hayden White fala sobre a transformação da matéria bruta da vida em texto nos seguintes termos:
“... o problema de como fazer a tradução do que se sabe no que se conta, o problema de dar à experiência humana uma forma assimilável a estruturas de sentido...” 
Eu acho qeu o problema é um pouco outro. Aquilo que não se conta, não se sabe. Quem não conta, não sabe; na melhor das hipóteses tem uma vaga intuição. Mas a matéria bruta da vida existe e bate no cangote dos inarticulados com a mesmo força. O agravante é que os inarticulados têm a cabeça enterrada na areia. 
5. Hayden White é um desses sujeitos que, mesmo quando erra, de certa forma acerta. Máio de Andrade também é assim e mais, raramente o brasileiro incorreu nesse terrível hábito acadêmico que é comportar-se olimpicamente com relação ao seu objeto de estudo.
6.  Num dos seus lirvos auto-biográficos mais interessantes, Primo Levi fala não de traduzir o que se conta no que se conta, mas sim de revestir de palavras o amigo querido.
Hoje sei que é um empreendimento sem esperança de sucesso revestir um homem de palavras, fazê-lo reviver em uma página escrita: um homem como Sandro tal e qual.”
[o original: “Oggi so è un’impresa senza speranza rivestire un uomo di parole, farlo rivivere in una pagina scritta: un uomo come Sandro in specie”. ]

Por quê insistir num empreendimento sem esperança de sucesso? A resposta eu encontro em Faulkner, que dizia que quem só conhece o sucesso é um imbecil. Escrever fazendo jus sobre a matéria vivida é um desafio impossível. Viver é escrever uma biografia inacabada, um fracasso. Com a palavra Brás Cubas:
Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior, e que será corrigida, também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.” 

Ainda assim Primo Levi e Brás Cubas e todo mundo real ou fictício que "abre a boca" na página de um livro ou conta uma história na TV ou no cinema ou numa canção, insistem em contar o que dizem ser incontável, em evocar o que dizem ser indescritível. 

Estamos todos buscando um milagre. Roland Barthes nos dá seu testemunho que, sim, às vezes o tal empreendimento impossível tem êxito. No caso dele acontece num momento de luto, num encontro fortuito com uma fotografia antiga com base na qual Barthes diz: Observei a menina e enfim reencontrei minha mãe.” A ciência impossível utopicamente de repente se concretiza: "... a Fotografia do Jardim de Inverno, esta era bem essencial, ela realizava para mim, utopicamente, a ciência impossível do ser único.”

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