Dois trechos da entrevista da linguista Yeda Pessoa Castro para a revista de história da Biblioteca Nacional me chamaram a atenção:
"Fui ver a estrutura silábica do português arcaico e a formação silábica e o processo fonológico das línguas faladas em Angola e no Congo, e reparei numa extrema coincidência: é o mesmo tipo de estrutura silábica: consoante-vogal-consoante-vogal o tempo inteiro. Houve o mesmo tipo de encontro do português arcaico com essas línguas, que eram faladas majoritariamente no Brasil. Em vez de haver um choque, em vez da necessidade de emergir outro falar, um falar crioulo, não: houve simplesmente uma acomodação, devido às coincidências dessas estruturas linguísticas."
O que mais me marcou foi o trecho que falava em acomodação ao invés de choque como marca do encontro dos sistemas linguísticos do ocidente africano sub-saariano e do português. Porque sem dúvida somos, para bem e para mal, uma cultura de acomodação. A questão é que a nossa cultura de acomodação não deixa de fazer uso do choque. Ironicamente os choques aparecem justamente em nome das nossas acomodações. Mas a análise linguística fala para mim de uma forma curiosa pela qual aqueles que sofrem os choques também trazem muito para a mesa das nossas acomodações.
"O nível mais próximo que tínhamos de vestígios de línguas africanas é o das linguagens religiosas: a dos vissungos em Minas Gerais, a do candomblé da Bahia, a da umbanda. A linguagem estava lá, não mais como competência linguística, mas como competência simbólica. Esta foi outra descoberta do meu trabalho: a competência simbólica. [...] fomos cantar para santo Antônio: ele estava num cantinho do altar, com aquelas flores azuis e brancas de papel crepom, e eles começaram a cantar a ladainha em latim acompanhada de tambor. O trecho “Agnus Dei qui tollis peccata mundi” foi cantado “Agnus dê clitóris peccata mundi”. Agnus passou a ser uma entidade que nos deu clitóris. Dizem que quem não sabe rezar xinga Deus, eu não concordo. Quem não sabe rezar que continue rezando dentro de sua competência simbólica, a competência linguística não tem nenhuma importância."
É coisa já antiga a constatação de que as palavras não significam uma coisa só e ainda por cima não significam nada inteiramente. Em outras palavras e linguagem de dia-de-semana, mesmo na nossa língua mãe falamos muito mais e muito menos do que queremos o tempo todo, mesmo quando usamos a mais dicionarizada e gramatizada versão da nossa língua. Uma oração pede mais e faz mais [e menos] que pensamos quando abrimos a boca e juntamos a mãos. A linguista fala em competência simbólica na sua entrevista. Quero também acreditar numa competência poética, que é profundamente irônica e que não depende de ninguém. Afinal de contas, como não ver que pedir ao cordeiro de deus que dê clitóris aos pecados do mundo numa oração a um santo que ficou conhecido como "martelo dos hereges" é um ato de ironia poética sublime? Eu como ser humano do sexo masculino devidamente marcado pelo complexo de desclitorização que Freud não conseguiu ver, fiquei maravilhado com a imagem de um deus que, recebendo meu pedido através desse orgão tão sensual que é a língua, pudesse me conceder, como pecado do mundo que sou, um clitóris.
"Fui ver a estrutura silábica do português arcaico e a formação silábica e o processo fonológico das línguas faladas em Angola e no Congo, e reparei numa extrema coincidência: é o mesmo tipo de estrutura silábica: consoante-vogal-consoante-vogal o tempo inteiro. Houve o mesmo tipo de encontro do português arcaico com essas línguas, que eram faladas majoritariamente no Brasil. Em vez de haver um choque, em vez da necessidade de emergir outro falar, um falar crioulo, não: houve simplesmente uma acomodação, devido às coincidências dessas estruturas linguísticas."
O que mais me marcou foi o trecho que falava em acomodação ao invés de choque como marca do encontro dos sistemas linguísticos do ocidente africano sub-saariano e do português. Porque sem dúvida somos, para bem e para mal, uma cultura de acomodação. A questão é que a nossa cultura de acomodação não deixa de fazer uso do choque. Ironicamente os choques aparecem justamente em nome das nossas acomodações. Mas a análise linguística fala para mim de uma forma curiosa pela qual aqueles que sofrem os choques também trazem muito para a mesa das nossas acomodações.
"O nível mais próximo que tínhamos de vestígios de línguas africanas é o das linguagens religiosas: a dos vissungos em Minas Gerais, a do candomblé da Bahia, a da umbanda. A linguagem estava lá, não mais como competência linguística, mas como competência simbólica. Esta foi outra descoberta do meu trabalho: a competência simbólica. [...] fomos cantar para santo Antônio: ele estava num cantinho do altar, com aquelas flores azuis e brancas de papel crepom, e eles começaram a cantar a ladainha em latim acompanhada de tambor. O trecho “Agnus Dei qui tollis peccata mundi” foi cantado “Agnus dê clitóris peccata mundi”. Agnus passou a ser uma entidade que nos deu clitóris. Dizem que quem não sabe rezar xinga Deus, eu não concordo. Quem não sabe rezar que continue rezando dentro de sua competência simbólica, a competência linguística não tem nenhuma importância."
Foto minha: Clitóris dos Pecados do Mundo |
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