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Showing posts from June, 2016

Lendo Marx com óculos de professor de literatura

O Carlos Marques quer te ver dançar Vamos ler Marx e ele nos põe sempre para dançar entre o significado das coisas em si e o significado dessas mesmas coisas quando elas caem no mundo, interagindo umas com as outras. Esses dois significados nunca coincidem mas não são totalmente diferentes. O tango que os dois significados dançam é em si um todo instável, movente, sujeito a chuvas e trovoadas constantes, em mutação perene. Fazem parte dessa coreografia complexa, por exemplo, três conceitos: o valor [o hieroglifo social das coisas, que se manifesta apenas nas relações social entre mercadorias], o valor de uso [definido pela utilidade das coisas, pelo que essas coisas podem fazer quando caem no mundo] e ainda o valor de troca. Olha esse trechinho [sinto muito, em inglês, mas não deve ser difícil achar em português]: Could commodities speak, they would say: our use-value may be a thing that interests men. It is no part of us as objects. What, in fact, doe...

3 contos de Lydia Davies

Lydia Davis Não é a primeira vez que Lydia Davis aparece aqui no blogue. Ela é uma das poucas escritoras de prosa em inglês que me entusiasmaram ultimamente. Os três textos abaixo são do livro can't and won't que ela lançou em 2015. Não tenho tempo para grandes elaborações aqui no meu canto, mas o habitual laconismo no blogue talvez se encaixe bem com os textos dela. Para mim Lydia Davis é como a Clarice Lispector dos contos/crônicas, principalmente quando poesia, conto e crônica se confundem nos textos mais curtos dela - o trabalho dela é vendido como contos mas essas são questões mercadológicas antes de qualquer coisa.   Bloomington Agora que já estive aqui por algum tempo, posso afirmar com certeza que nunca tinha estado aqui antes. Encontrei o original de "Bloomington" enterrado nessa resenha do livro Can't and Won't . O Romance Ruim Esse romance difícil e sem graça que eu trouxe comigo para a viagem - eu continuo o lendo. Eu já voltei a ...

Música que você precisa conhecer: Lucinda Williams

Gostam de criticar o sul dos Estados Unidos, projetando para lá tudo o que há de ruim e atrasado nos Estados Unidos, principalmente o racismo supremacista que envolveu esse país num manto triste de segregação racial no estilo do apartheid até pelo menos os anos 60 e ainda traz sequelas até hoje. Sim, o sul é a parte mais pobre e "atrasada" economicamente dos Estados Unidos, mas também é um celeiro inesgotável para a parte mais interessante da cultura dos Estados Unidos, aquela que não se contenta em ser apenas uma nova Inglaterra, aquela que se deixa infiltrar nas raízes por várias matrizes culturais profundas, vernaculares, fortes demais. Lucinda Williams, eu suponho, deve ser muito pouco conhecida no Brasil, então dá vontade de compartilhar essa maravilha. Por que esse cantinho meu jogado às moscas serve entre outras coisas para isso; para compartilhar tantas coisas que eu acho maravilhosas e que passam em branco no mundo dos Faustinhos, FMs e jornalões e quetais.  Fr...

Poesia Minha: Everything Must Go!

--> My Secret World de Martin Wong Everything Must Go! Ao pintor Martin Wong [1946-1999] que,  lendo nas vitrines anúncios de liquidações  ["Everything Must Go!"]  na véspera da sua primeira exposição individual, jogou fora ou entregou a desconhecidos  seus quadros e tudo o que era seu e foi encontrado semanas depois ensinando pintura  aos colegas internados num hospital psiquiátrico.   a casa as plantas no jardim lá fora cá dentro nos quartos baús malas bolsas móveis armários e roupas chinelos sapatos talheres e pratos utensílios mantimentos aparelhos e aparatos espelhos escovas tesouras quadros tudo no olho da rua na boca de lobo na fossa no fogo no lixo no mar tudo, tudo tem que ir embora agora já gavetas arquivos pastas caixas e dentro livros retratos títulos diplomas certificados   nascimentos casamentos divórcios óbitos bons e maus antecedentes sinistros multas apólic...

Literatura e Crueldade em Anne Enright

Anne Enright - Eu o fiz. Eu o fiz do jeito que ele é. Ele é meu filho e eu não gosto dele, e ele também não gosta de mim. - Mas de mim você gosta, né, Mãe? - De você eu gosto agora . Diálogo entre mãe e filha em The Green Road , romance de Anne Enright - Eu recomendo. - Recomenda o quê? Depressão?  - Não, recomendo ter um colapso nervoso logo cedo. Se a sua vida se desintegra logo cedo, você consegue remontá-la de novo. São aqueles que estão sempre à beira de uma crise mas que não chegam a afundar até o fim que estão em apuros. Anne Enright em entrevista ao jornal quando ganhou o Man Booker Prize em 2007

Animais em Bizâncio

--> Foto do Museu de Istambul que encontrei aqui Alguns arqueólogos se especializam em ossos de animais. Estes nos informam que os cavalos em Bizâncio começavam a trabalhar com cargas pesadas com dois anos de idade. O freio usado pelos bizantinos em seus cavalos era peculiar: sua mordedura desgastava o céu da boca dos animais até o osso e terminava abrindo um buraco que ligava a boca à cavidade nasal. A pressão exercida a partir daí se transmitia por toda a estrutura óssea dos cavalos, que costumavam morrer antes dos dez anos com problemas nas patas, joelhos, pernas e colunas. Incapacitados os cavalos eram abatidos e suas carcaças eram atiradas no fundo do cais do porto, ali onde começa a Europa, depois que se retirassem delas as crinas, os rabos, a pele e a carne. Os bizantinos, ao contrário dos romanos, apreciavam a carne do cavalo, assim como de burros e de ursos amestrados. Os ursos se apresentavam ao lado de elefantes no circo do hipódromo e seus crânios revel...

O que pode assistir Eisenstein em Guanajuato contra esse exército homofóbico, agora armado com uma AR-15

Talvez faça algum sentido hoje recomendar um filme de 2015 do diretor Peter Greenway, Eisenstein em Guanajuato . Recomendar um filme que corre o risco de ser cafona de vez em quando e que corre o risco de reduzir o México mais uma vez àquele país "exótico" que inspirou 2587 europeus e gringos sedentos de sensualidade e sentimentalismo. Contrariando nossos instintos, esqueçamos, por favor, todas as questões de representação, inclusive àquelas relacionadas com uma inexistente "base documental" para a história que se conta no filme sobre o famoso cineasta russo. Quero recomendar hoje Eisenstein em Guanajuato por ser um filme que não pede desculpas por mostrar cenas de sexo entre dois homens com aqueles proverbiais violinos melosos e meia-luz "romântica", um filme que não pede desculpas por mostrar o corpo masculino completamente nu sem esconder "as partes pudentas"com aqueles lençolzinhos estratégicos e aqueles malabarismos de câmera que o purat...

Schopenhauer, o rabugento, em quatro momentos

Depois de ler uma versão traduzida com um facão para o inglês por Peter Mollenhauer, me deliciei com a tradução de Pedro Sussekind para a LP&M. Digo que gostei do texto em português em si, pois não tenho como julgar uma tradução do alemão - apenas ficaram escandalosamente evidentes para mim os cortes na versão em inglês. 1. Detestando o desconhecimento geral do latim e do grego antigos [naquela época]: "A preguiça e sua filha ignorância estão por trás disso. É uma vergonha! Um não aprendeu nada, o outro não quer aprender nada." 2. Detestando o francês: O francês, em sua essência é um "jargão medonho", "esse italiano deformado da maneira mais repugnante, com as longas sílabas atrozes e a pronúncia nasal" (157). 3. Detestando os monolíngues: "As fronteiras das línguas só existem para os ignorantes" (158). 4. Detestando neologismos e estrangeirismos que não acrescentam nada, como báique ou Txin: "... que a provisão de palavr...

A utilidade da música e poesia

Era uma vez um compositor com pouco mais de 60 anos, à beira da morte. Uma década antes ela havia afirmado que a função principal de um compositor como ele era "ser útil e ser útil para os vivos". Ele então resolve aproveitar o resto de tempo de vida dele e mais uma vez ser útil. Útil para nós, os vivos, uma última vez. A qualidade abstrata de uma música como essa, instrumental sem letra, faz dela um verdadeiro Bombril musical, de 1001 utilidades. Hoje essa versão aí de cima do quarteto de cordas de Benjamin Britten interpretado pelo Ives Quartet e felizmente tão facilmente acessível no iutúbio é para mim uma questão de vida ou morte. Mais ou menos meia-hora de música, escutada duas vezes seguidas na penumbra, com portas e janelas fechadas para encher o ambiente e restaurar minha sanidade [relativa]. Como efeito quase colateral, essa hora de música talvez até me dê um pouco de clareza sobre a minha própria utilidade no mundo. Meu valor, minha valia principal é compartilhar ...

Uma contribuição ignorada do português ao Marxismo ou "cada hum dança segundo os amigos que tem na sala"

Foto minha: Pedreira Tentando entender porque diabos um velho poema do século XVI dizia "hazem Virey de pidreiros" confirmei que "pidreiro" era uma variação antiga de "pedreiro". Isso não ajudava muita a entender o poema que reclamava da atuação do Vice-rey intercedendo em favor de "perdoar" judeus presos por serem o que eram. Mas aí descobri que "pedreira" podia ser uma outra coisa: "valia, interecessor, medianeyro &c." Daí para mais iluminação no verbete "Valia" do velho dicionário de Bluteau: "VALIA. Preço. O em que que está avaliada hua cousa. [...] Valia. Pedreira. A pessoa de cujo valimento nos valemos, para conseguir alguma coisa. Na corte del Rey minha valia he Pedro, &c. [latim] O q tem muitas valias na Corte. [mais latim]. (Como neste tempo os homens estão já desenganados de quão pouco valem os merecimentos, que por elles não o terem) vierão a chamar Valia às adherencias, & lhes tem...