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Memórias da sala de aula: sobre os usos possíveis da meta-história

Me marcou muito certas leituras que fiz de Hayden White nos meus tempos de aluno, particularmente o momento em que enfurece os historiadores com aquele enquadramento de grandes clássicos da disciplina no século XIX num esquema de análise de gêneros literários no seu Metahistória. Desde então, com certas adaptações à teoria de gêneros dele [prefiro usar a farsa no lugar da sátira] e sem aquela empáfia quase-formalista que White tem para com a história, tenho feito usos variados de algumas ideias dele.

Tenho ensinado aos meus alunos em diversas oportunidades que eles devem se aproximar não apenas de literatura e do cinema de ficção mas também de textos jornalísticos e/ou científicos com um olhar atento para o gênero que é escolhido ali e nas implicações que essa escolha tem na visão geral do mundo que fica subjacente naquele texto.

Também às vezes aproveito para um exercício mais arriscado, bom para praticar protegido pela impunidade da sala de aula [aquele lugar de onde ninguém se lembra de nada duas semanas depois, além do professor]. Trata-se de uma pequena provocação: um exercício  de comparativismo cultural entre Brasil, Estados Unidos e México [meus alunos geralmente tendem a gravitar entre essas três culturas] . Digo a meus alunos que, em termos bem gerais, a história nos Estados Unidos é contada/compreendida pela chave da épica, no
Niños Héoes
México pela chave da tragédia e no Brasil pela chave da farsa. Nos três países essas escolhas não são vistas como tal, e sim como consequência lógica/natural "do que aconteceu de fato", e aí eu venho com aquela coisa incômoda de Hayden White de ver a narrativa organizando de forma particularizada a matéria prima da história, refletindo desejos/tendências culturais, pelo menos parcialmente inconscientes às
Titus Kaphar, "The Myth of Benevolenve"
vezes. Jefferson, um escravocrata dotado daquele infalível sadismo/racismo estrutural, meio pernóstico na sua idealização de um suposto espírito democrático do Anglo-Saxão desde as mais priscas eras e francamente ridículo na hipocrisia de suas "duas famílias" se transforma num heróico arauto da liberdade e das luzes para o mundo inteiro. Dom João VI, aquele tirano violento e indiferente à injustiça, vira um gorducho palhaço bufão casado com uma manca histérica, quase atirando abacaxis e bacalhaus da sacada do Paço feito um Chacrinha/Trapalhão que supostamente "gostava da bagunça do Brasil". No México, entre centenas de batalhas ganhas e perdidas, os reais heróis são sempre mártires desde a independência até a imagem de um punhadinho de soldados/meninos imberbes que cometem uma espécie de suicídio em nome da pátria ao decidir enfrentar sozinhos um batalhão inteiro de invasores sanguinários.

Finalmente, costumo usar Hayden White para advertir meus alunos que eles mesmos constroem narrativas todos os dias, mesmo nas conversas mais banais, sempre que contam alguma coisa que aconteceu a um amigo, namorado ou familiar. Nessas narrativas frequentemente eles mesmos figuram como protagonistas e, em nome do autoconhecimento valeria a pena registrar e depois examinar essas narrativas com que eles se constroem para si mesmos e para os amigos, com olho vivo para o predomínio de um ou de outro gênero.

Comments

Anonymous said…
Gostei. (Tata)
Imagino que você tenha histórias assim também, né, Tata? A sala de aula é um laboratório para a gente mesmo.

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