O Paulo me convidou a colaborar com ele por aqui. Nós só nos conhecemos assim, pela internet, mas há muitos anos. Quando trocamos as primeiras palavras um com o outro, eu era uma recém adulta estudante de história muito corajosa. E eu escrevia muito. Muito mesmo. Muitas coisas aconteceram na minha existência e no mundo desde então. Dentre elas, eu envelheci e tomei consciência do tamanho da minha ignorância. Sinto falta de não ter medo de expor ideias não testadas e de deixar frases que não se completam nos textos. O "Ensaio sem compromisso" que vou deixar postado deve ter sido a última vez que fui jovem. Eu meio que já sabia que seria assim e já sentia saudades. Será que tem como voltar?
Ensaio sem compromisso
24/12/2015
Ensaio sem compromisso
24/12/2015
Escrevi este rascunho há mais ou menos um mês. E então ele ficou guardado, esperando por duas coisas: 1-que eu tivesse tempo para acrescentar umas referências cabeçudas, 2- a oportunidade de publicá-lo em algum lugar onde fosse realmente lido. O tempo está passando, porém, e nenhuma das expectativas se cumpriu. Daqui há pouco ele estará velho e não terá o valor que poderia ter tido quando as pessoas ainda lembravam de Mariana.
Decifra-me ou te devoro
A primeira vez que eu ouvi Volta, da banda carioca Baleia, havia em mim uma grande expectativa e até certo ponto medo. O primeiro disco deles, Quebra Azul, foi um achado que me fez lembrar outros tempos. Tempos em que eu ainda me surpreendia com freqüência, admirava feitos musicais e então virava uma espécie diferente de fã. Não daqueles fãs que se atiram, que acham os artistas lindos, nunca fui assim. Minha questão sempre foram os feitos. Gostava de contemplar as descobertas sonoras, os arranjos, até onde era possível ir, ou melhor, impossível ir. Baleia e o seu Quebra azul me fizeram voltar à adolescência no sentido de que tinha sido lá a última vez em que eu senti saudades de ouvir pela primeira vez algo que me arrebatasse ao mesmo tempo pela estranheza e pela acessibilidade, algo que me fizesse pensar: "por que foi que eu não compus isso?" Daí o medo do segundo disco. Será que eles iriam além? Ou se repetiriam? Ou pior, será que estariam aquém de si mesmos?
Aconteceu. Baleia lançou um single chamado Volta e o divulgou na internet com um lyric video ambicioso. Ambicioso e minimalista, combinação interessante, aliás. E, devo admitir, meu medo aumentou depois de ver alguns segundos. Parecia demais, num sentido negativo. Tive medo do ridículo, sentimento comum entre os medíocres. Mas não, não era demais e muito menos ridículo. Era o que era. E era muito bom.
No vídeo, o rosto da vocalista é a única imagem na maior parte do tempo. As variações estão por conta das expressões dela, que mantém os olhos fechados, e da intensidade e proximidade da luz que varia. A música começa com a parte percussiva. Em seguida, aparece o violão forte, mas preso ao compasso e, depois, o baixo com uma linha que sugere suspense. Segundos se vão até que as duas vozes, Sofia e Gabriel Vaz, finalmente apareçam com o timbre feminino em primeiro plano. Quando se pensa que tudo que podia acontecer já aconteceu, eis que surge uma massa de instrumentos de cordas executando frases curtas em ritmo acelerado enquanto a bateria permanece precisa, porém improvável. O circo está armado para arrepiar os ouvintes, mesmo que a letra pareça incompreensível. A estética completa da coisa - sonoridade, letra e vídeo - monta um ambiente de fim de mundo e das viagens ao espaço de grandes feitos do cinema dos últimos anos, Melancolia, Interestelar e Gravidade: "Eu fui repelida ao vazio/ Tudo aqui em eterno arrepio/ Acordei fora da terra/ Eu vou orbitar, sem lugar, vou girar [...]". A voz continua narrando o que vai acontecer e descrevendo a si mesma até que o sujeito que canta define seu lugar como "dois mundos em colisão". A passagem pela atmosfera está terminada. O arranjo de cordas se estende, estamos em gravidade zero. Este é o clímax. Sofia abre os olhos. As frases de cordas se prolongam e o tempo, menos subdividido, parece mais devagar. O coração do ouvinte acelera e ele está prestes a chorar. Sofia e Gabriel cantam num uníssono belíssimo acrescido de camadas e camadas de suas próprias vozes: "Atravessei/ Vou queimar no céu/ Desmanchar/ Dissipar o pó/ E verei/ O que vai sobrar/ E aterrissar no meu corpo".
Por quê? Qual o sentido disso? Minha tese é a de que Volta é uma canção que fala principalmente de dois assuntos, rejeição e solidão, necessariamente nesta ordem. Ser repelida ao vazio é justamente a sensação de um fora. O momento em que se ouve o não é o instante da perda das referências, tudo que lembra segurança desaparece, não há nada a que se apegar, o tempo interior fica suspenso. Mas o mundo continua, e embora o sujeito que acabou de ser rejeitado esteja se afastando cada vez mais da Terra, ninguém percebe. Trata-se de uma experiência essencialmente solitária. Perceber-se só é doloroso, é atravessar a atmosfera, é queimar, é dissipar o pó, é cortar os fios e se libertar de todas as falsas impressões de estar inevitavelmente ligado ao mundo exterior. Depois disso, o que sobra? O eu de fato, que consciente de si aterrissa, volta ao seu corpo.
Apesar de o feito poético inicial não ser nem um pouco irrelevante, ele vai além. A grandiosidade e a genialidade da letra, harmonia, melodia e de todos os elementos que compõem Volta talvez esteja no fato de que a metáfora da viagem ao espaço não se refere apenas às sensações experimentadas por um sujeito que foi rejeitado por outro. Ela serve à humanidade. E neste ponto está a semelhança com o ambiente criado pelo cinema em Interestelar e Gravidade. Tais produções cinematográficas falam de uma Terra que não suporta mais os seres humanos. Assim como no cinema, na vida real, o interesse pelo espaço não está mais tão ligado à busca de vida inteligente, como em outros tempos, e sim à procura de condições de vida humana. Ir ao espaço é uma necessidade quando a humanidade está sendo repelida pelo planeta que tenta resistir a nós. E pode ser que essa aplicação maior seja a chave para se entender a parte mais enigmática da música. A bateria impera absoluta, o baixo entra agressivo, e a letra diz: "Uma charada/ Apodrecida/ Na velha forma já engessada [...]".
Enquanto seres humanos produzem filmes sobre o fim do mundo, seres humanos continuam a produzir o fim do mundo. Essa geração de catástrofes que terminarão por destruir o planeta, ou por nos expulsar dele, não cessa porque insistimos em velhas formas engessadas de produção e consumo. Os recursos estão acabando, estamos poluindo rios, mares, ares. Barragens de minério estouram, matam pessoas, extinguem peixes, cidades inteiras banhadas pelo imenso Rio Doce fazem filas por horas para comprar água potável e... Diante disso, a população de Mariana-MG promove passeata pela permanência da mineração com o mesmo modelo inconsequente que gerou a destruição de grande parte do manancial de água potável do estado. Em outras palavras, a realidade grita pela nossa atenção, "[...] Em caixa alta/ E sublinhada/ Com marca texto/ Amplificada/ Examinada/ Esmiuçada [...]", mas continua "desatendida". A canção termina como um aviso: sim, estamos com medo de dar com a cara no lado escuro; sim, estamos com medo de tentar novas formas de vida que por serem novas nos parecem assustadoras, imprevisíveis. Mas lá, e só lá, no desconhecido é que há um futuro. Não temos escolha. E essa charada pode muito bem ser entendida como o enigma e a mudança como a esfinge: ou deciframos o quão urgente ela é, ou ela nos devora.
Andar pelas ruas de Mariana ouvindo Volta nos fones de ouvido, alguns dias depois do rompimento das barragens da Samarco, foi para mim a experiência mais arrepiante dos últimos tempos. A humanidade precisa aterrissar, voltar a si. As evidências disso estão cada vez mais próximas, cada vez mais aqui e agora. Neste contexto, o título da música soa como um pedido. Volta.
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