Os Três Mal-Amados
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili…”
(Carlos Drummond de Andrade)
JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a
poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que
essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o
afastamento em que a vejo neste momento?
RAIMUNDO: Maria era a praia que eu frequentava certas
manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente
livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de
extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
JOAQUIM: O amor comeu meu nome, minha identidade, meu
retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde
eu escrevera meu nome.
JOÃO: Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma
antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em
outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira
tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos
anos ou muitas léguas.
RAIMUNDO: Maria era sempre uma praia, lugar onde me
sinto exato e nítido como uma pedra – meu particular, minha fuga, meu excesso
imediatamente evaporados. Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem
profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor ou poeira.
JOAQUIM: O amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida
de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor
comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
JOÃO: Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma
Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada
a mim?
RAIMUNDO: Maria era também uma fonte. O líquido que
começaria a jorrar num momento que eu previa, num ponto que eu poderia
examinar, em circunstâncias que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar
com os olhos o crescimento de um arbusto, o surgimento de um jorro de água.
JOAQUIM: O amor comeu meus remédios, minhas receitas
médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus
raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
JOÃO: Esta é a mesma Teresa que na noite passada
conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a
tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse
sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
RAIMUNDO: Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu
estava ciente de todos os detalhes do seu corpo, que poderia reconstituir à
minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria
dificil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha
anatômica.
JOAQUIM: O amor comeu na estante todos os meus livros
de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no
dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
JOÃO: Ainda me parece sentir o mar do sonho que
inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o
espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem
estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo
contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais
justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como
as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).
RAIMUNDO: Maria era também, em certas tardes, o campo
cimentado que eu atravessava para chegar em algum lugar. Sozinho sobre a terra
e sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem.
JOAQUIM: Faminto, o amor devorou os utensílios de meu
uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unha, canivete. Faminto ainda, o amor
devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no
banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
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