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Arquivo de inconstâncias

Há uns 6 anos atrás li Gregório de Mattos de trás para frente e, no final das contas, além de um trabalho bastante meia-bomba que nunca mais vai sair da gaveta, fiz esse poema-ventríloquo sobre “Boca do Inferno”, um poeta que representa, para mim, a matriz do rancor do que seria muito tempo depois de uma boa parte da classe média brasileira, um rancor raivoso provocado pelo sentimento [completamente equivocado na minha opinião] de ser melhor que o país em que se vive. Gregório de Mattos é um grande escritor e um grande escritor transforma em ouro qualquer coisa, até mesmo a mesquinharia de classe e raça:

Arquivo de inconstâncias

Para Ignácio Ruiz



Caí de vertigem em verso 1
até o fundo preto do tacho
ferventando esse caldo macho
onde a cana ferve perversa
com o que havia de ser essa merda 5
que atende pelo nome Brasil –
essa puta que me pariu
e que não larga a minha boca
que fede ao suor dessa louca
tesão de eu ser também o anti- 10

Brasil. E confesso que fui
o que fui manco: sendo barro
despencando barranco abaixo
de mim. Sem querer eu ser ruim,
fui ser fogo duro e instruí 15
cana em bagaço de engenho:
resposta em posta no lenho
requeimando as costas quentes –
minhas costas de indigente
no prato frio do meu empenho. 20

Moinho de gente que eu nego
até que moas o meu peito só
e meu juízo inteiro em pó,
eu bem conheço teu nó cego:
és braseiro, és cruz, és prego, 25
és caralho a quatro empunhado,
bainhado, contraprumado
no oco da sede de ferro.
Não há cona com que esse berro
de bode desencapado 30

que é o meu desejo no Mato
recôncavo possa. Só
voltei porque sei ser pó
na fé, em carne, em Deus, em ato
de arrepensamento fátuo – 35
Pó de onde vim, pra onde eu vou,
nó do que fui do que sou:
esse é o estofo da minha musa
essa desrazão que lambuza
a carne que me forrou. 40

Não forra – hoje não sou carne.
Eu sou papel mudo e mofo
no fundo do arquivo morto
de onde reveio esse alarme
falso de que eu era carne 45
de novo, que eu estava vivo
que não só existi, que existo.
E a que ponto chegaste,
Amigo, não me cheiraste?
Não vês que estou consumido? 50

Comments

gostei muito, da metrica, das rimas internas. tenho saudades dessa epoca em que se fazia uma poesia complexa, de construção formal estudada, e sentido entre o exposto e o oculto.

além disso, é uma bonita homenagem, o espírito de g.m. está aí.
Obrigado, Sabina!

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