William Adolphe Borguereau
Dante e Virgílio no Inferno, 1850
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/70/William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Dante_And_Virgil_In_Hell_(1850).jpg/482px-William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Dante_And_Virgil_In_Hell_(1850).jpg
[Esse poema está muito complicado. Ando dando voltas e voltas com ele há mais de um ano. Essa é uma versão ainda rascunho.]
Sobre o amor
Uma aura quase cheiro de desastre:
olhos de gato, duros, amarelos,
olhando pra mim, e o meu desejo inato
de esconder pelo menos uma beirinha
da verdade na manga do meu sapato,
olhos me estudando,
sóbrios, especuladores,
com a atenção intensa e indiferente
de um bebê (muito além desse sonoro
peido humano que passa por audácia).
E eu mal-acompanhado
por um desses dessa tribo
que mora na praia
e come sardinha em lata,
que me atira logo,
cheio de certeza:
“esse tipo ordinário aí eu conheço
de longe, pelo cheiro.”
Eu truco afiado e seco
como um jacaré no sol:
“caráter é caroço e casca:
punhal que não se vê o cabo.”
Meu mau-companheiro aceita meu truco
e pede um longo seis
em forma de aparte em prosa:
“Eu digo e repito quantas vezes você quiser ouvir: esse negócio de amor é uma bela duma balela. Essa gente toda por aí diz que ama isso, que ama aquilo, que ama não- sei-o-quê, mas a gente só ama mesmo só o que ainda não tem.
Amor que dura a gente encosta um dedinho de leve nele, ele abre as asas e vai embora.
É por isso que eu digo: melhor largar mão de tudo e não ter precisão de nada, principalmente daquilo que não pode ser seu sem esforço além do seu próprio puro ordinário de dia de semana.
Melhor ainda se o que a vida negaceia ao caboclo não interesse mais a ele.
A gente então vai e se esconde na barra da calça da gente mesmo e finge acreditar que tudo ou é bobagem ou é obrigação sem graça e a gente se esconde, principalmente, da gente mesmo, que o desprezo que a gente sente pela gente mesmo é o pior dos venenos sem soro.
E me vem esse povo todo aí falando de amor; tenha paciência. Não tem nem sentido nenhum tentar satisfazer vontade de amor nenhum. Tem é que arrancar tudo o que cheira a amor pra fora do corpo, corpo este que aliás é uma outra bela duma balela.
O corpo não passa de uma puta-velha vendendo pente pra careca, vendendo um paraíso de cartolina para retardados mentais. O corpo não passa de uma porcaria duma gaiola em que a gente vive dentro, preso sem conseguir nem se sentar nem se pôr de pé, até chegar o dia da gente pedir arrêgo e sair fora dele e morrer.
Mas isso também já é meio outro assunto.”
Mal acompanhado
eu estava além da conta.
Tentei um golpe sucinto:
“O amor não morre;
ele vai é embora,
e aí quem morre é você,
fulminado, carcomido,
cego, e pior:
sem nem saber que.
E além do mais, você me desculpe,
mas coragem não existe
sem descrer da boa sorte.”
Ele não aceitou o empate:
“O que eu sei é que esse tal amor seu
bate a carteira dos dois patos
e cai fora e aí ficam os dois,
a carne pendurada
no gancho do açougue,
um de frente pro outro,
tentando, cada um sozinho,
acender um fósforo já usado
numa lata cheia d’água.”
Azar.
Eu baixei as malas no chão
e tranquei a porta do quarto
brigando com as chaves
e quando eu me virei
lá estava ela,
nua, descalça,
nem vergonha, nem modéstia:
a fome, a sede.
Dante e Virgílio no Inferno, 1850
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/70/William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Dante_And_Virgil_In_Hell_(1850).jpg/482px-William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Dante_And_Virgil_In_Hell_(1850).jpg
[Esse poema está muito complicado. Ando dando voltas e voltas com ele há mais de um ano. Essa é uma versão ainda rascunho.]
Sobre o amor
Uma aura quase cheiro de desastre:
olhos de gato, duros, amarelos,
olhando pra mim, e o meu desejo inato
de esconder pelo menos uma beirinha
da verdade na manga do meu sapato,
olhos me estudando,
sóbrios, especuladores,
com a atenção intensa e indiferente
de um bebê (muito além desse sonoro
peido humano que passa por audácia).
E eu mal-acompanhado
por um desses dessa tribo
que mora na praia
e come sardinha em lata,
que me atira logo,
cheio de certeza:
“esse tipo ordinário aí eu conheço
de longe, pelo cheiro.”
Eu truco afiado e seco
como um jacaré no sol:
“caráter é caroço e casca:
punhal que não se vê o cabo.”
Meu mau-companheiro aceita meu truco
e pede um longo seis
em forma de aparte em prosa:
“Eu digo e repito quantas vezes você quiser ouvir: esse negócio de amor é uma bela duma balela. Essa gente toda por aí diz que ama isso, que ama aquilo, que ama não- sei-o-quê, mas a gente só ama mesmo só o que ainda não tem.
Amor que dura a gente encosta um dedinho de leve nele, ele abre as asas e vai embora.
É por isso que eu digo: melhor largar mão de tudo e não ter precisão de nada, principalmente daquilo que não pode ser seu sem esforço além do seu próprio puro ordinário de dia de semana.
Melhor ainda se o que a vida negaceia ao caboclo não interesse mais a ele.
A gente então vai e se esconde na barra da calça da gente mesmo e finge acreditar que tudo ou é bobagem ou é obrigação sem graça e a gente se esconde, principalmente, da gente mesmo, que o desprezo que a gente sente pela gente mesmo é o pior dos venenos sem soro.
E me vem esse povo todo aí falando de amor; tenha paciência. Não tem nem sentido nenhum tentar satisfazer vontade de amor nenhum. Tem é que arrancar tudo o que cheira a amor pra fora do corpo, corpo este que aliás é uma outra bela duma balela.
O corpo não passa de uma puta-velha vendendo pente pra careca, vendendo um paraíso de cartolina para retardados mentais. O corpo não passa de uma porcaria duma gaiola em que a gente vive dentro, preso sem conseguir nem se sentar nem se pôr de pé, até chegar o dia da gente pedir arrêgo e sair fora dele e morrer.
Mas isso também já é meio outro assunto.”
Mal acompanhado
eu estava além da conta.
Tentei um golpe sucinto:
“O amor não morre;
ele vai é embora,
e aí quem morre é você,
fulminado, carcomido,
cego, e pior:
sem nem saber que.
E além do mais, você me desculpe,
mas coragem não existe
sem descrer da boa sorte.”
Ele não aceitou o empate:
“O que eu sei é que esse tal amor seu
bate a carteira dos dois patos
e cai fora e aí ficam os dois,
a carne pendurada
no gancho do açougue,
um de frente pro outro,
tentando, cada um sozinho,
acender um fósforo já usado
numa lata cheia d’água.”
Azar.
Eu baixei as malas no chão
e tranquei a porta do quarto
brigando com as chaves
e quando eu me virei
lá estava ela,
nua, descalça,
nem vergonha, nem modéstia:
a fome, a sede.
Comments
ele vai é embora,
e aí quem morre é você,"
seu poema é lindo de doer...
Sendo precisa: é muito bom.