"A história que vou contar não tem a rigor um princípio, um meio e um fim. O Tempo é um rio sem nascentes a correr incessantemente para a Eternidade, mas bem se pode dar que em inesperados trechos de seu curso o nosso barco se afaste da correnteza, derivando para algum braço morto feito de antigas águas ficadas, e só Deus sabe o que então nos poderá acontecer. No entanto, para facilitar a narrativa, vamos supor que tudo tenha começado naquela tarde de abril.
Era o primeiro ano da Guerra e eu evitava ler os jornais ou dar ouvidos às pessoas que falavam em combates, bombardeios e movimentos de tropas.
"Os alemães romperão facilmente a linha Maginot" assegurou-me um dia o desconhecido que se sentara a meu lado num banco de praça. "Em poucas semanas estarão senhores de Paris." Sacudi a cabeça e repliquei: "Impossível. Paris não é uma cidade do espaço, mas do tempo. É um estado de alma e como tal inacessível às Panzerdivisionen." O homem lançou-me um olhar enviesado, misto de estranheza e alarma. Ora, estou habituado a ser olhado desse modo. Um lunático! É o que murmuram de mim os inquilinos da casa de cômodos onde tenho um quarto alugado, com direito à mesa parca e ao banheiro coletivo.
E é natural que pensem assim. Sou um sujeito um tanto esquisito, um tímido, um solitário que às vezes passa horas inteiras a conversar consigo mesmo em voz alta. "Bicho-de-concha!" — já disseram de mim. Sim, mas a essa apagada ostra não resta nem o consolo de ter produzido em sua solidão alguma pérola rara, a não ser... Mas não devo antecipar nem julgar."
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