Skip to main content

Clarice Lispector: Qualquer gato, qualquer cachorro

A via crucis do corpo é um livrinho fininho no qual, supostamente, Clarice Lispector “chuta o balde”. Chamado de “pornográfico”, o livro foi publicado em 1974, numa época que ainda vai ser conhecida algum dia, suspeito, como o “tempo de baldes chutados”. Numa curta explicação que introduz o livro Clarice diz: “ Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo.” [12]

Segue um trecho interessante de A via crucis do corpo, tirado de um dos três textos que se ligam à “Explicação” que introduz o livro, escritos todos [diz o narrador] no dia das mães e no dia anterior e posterior. Esses três textos misturam diário, crônica e ficção e aparecem lá pelo meio do livro, intercalados por contos.

- Você? a você só importa a literatura.
- Pois você está enganado. Filhos, famílias, amigos, vêm em primeiro lugar.
Olhou-me desconfiado, meio de lado. E perguntou:
- Você jura que a literatura não importa?
- Juro, respondi com a segurança que vem de íntima veracidade. E acrescentei: qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura. [37]

A biografia de Clarice escrita em inglês por Benjamin Moser, que eu li como um simples diletante, tem dois aspectos interessantes: vê Clarice como uma imigrante judia vinda de uma família que foge de um pogrom na Ucrânia e carrega consigo as cargas dessa dura história de vida e vê Clarice como uma pessoa que passou uma infância em extrema pobreza em Recife. Quando ele veio aqui apresentar seu livro, Moser me disse uma coisa interessante que reproduzo aqui de memória: "muita gente no Brasil acha que Macabéa é produto da criatividade de uma dondoca de classe média alta, baseado nas experiências com suas empregadas domésticas, mas não é nada disso: Macabéa é a própria Clarice.” Os Clariciólogos, laicos, ecumênicos ou ortodoxos, podem discutir e questionar essa maneira de ver Clarice Lispector nos seus próximos "concílios". Eu, como alguém que gosta muito do que ela escreveu mas tenho muita preguiça de canonizações literárias, achei interessante, ainda que possa ser só meia verdade.

Comments

mais uma opinião de diletante:

"a paixão segundo g.h." também começa num quarto de empregada. ela foi embora e deixou o quarto vazio.

a narradora/patroa entra e fica olhando o armário. então começa o lado filosófico/existencial.

sempre gostei muito das primeiras páginas, falando da empregada. mas nunca vi nenhum comentário sobre isso.
a gente tem que tomar cuidado para não introjetar demais os próprios preconceitos da gente na literatura dos outros. é fácil falar... :) Por isso é que é sempre ouvir bom ouvir alguém de outro contexto pensar sobre um autor que a gente conhece.

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...