Sinal dos tempos: o governo dos republicanos chamava seu programa de recuperação do sistema de ensino americano de "No Child Left Behind", nome simpático para um programa obcecado com medidores de eficiência, ou seja provas. Agora o governo democrata chama seu programa reformas de "Race to The Top" - o nome dispensa comentários.
Não sei como alguém lá em Washington não explica ao Obama que assim ele não agrada nem aos republicanos - que não vão estar satisfeitos enquanto não voltarem ao poder, mesmo que sua propaganda raivosa termine com um maluco qualquer tentando matar esse presidente "estrangeiro" e nem aos democratas - que não precisam eleger um presidente que promova uma "corrida ao topo" que começa com um aplauso entusiasmado a demissões em massa de professores "ineficientes" em Rhode Island.
Sobre educação queria reproduzir aqui um belo texto que li recentemente no blogue do Alexandre Nodari:
"Ontem, dia 5 de março, aconteceu um simpósio em homenagem aos 60 anos de Raúl Antelo, meu orientador, que já caracterizei como um "jagunço de posse da eletricidade". No evento (O trabalho crítico: Raúl Antelo, escrever a leitura, organizado por Susana Scramim), diversos ex-orientandos, mediados por figuras de peso, como Eneida Maria de Souza e Luz Rodríguez-Carranza, analisaram a obra de Antelo, e deram seus depoimentos. Ao coordenadar a segunda mesa, Eneida chamou a atenção para a heterogeneidade das abordagens e dos trabalhos dos ex-orientandos, observando que via ali uma relação não entre Pai e filhos, mas, talvez, entre tio e sobrinhos. A aparente simplicidade do comentário pode esconder a sua profundidade: mas, de fato, nele, Eneida captou o que está em jogo no trabalho de Raúl Antelo - a construção do Matriarcado. O Matriarcado não é o domínio das mulheres, o Matriarcado é a organização social baseada no filho do direito materno, isto é, na qual quem exerce a figura do "Pai" não é o que concebe, mas o irmão da mãe, o tio. O Matriarcado representa a abolição do Patriarcado, e de tudo que deriva dele: a autoridade, a propriedade, a herança - e, com ela, a tradição. Daí a centralidade da figura da "Acefalia" nos trabalhos de Raúl: a acefalia representa o fim da cabeça, do caput, da autoridade, do Pai. Daí também que não encontremos nele referências positivas ao "socialismo" ou ao "comunismo", regimes que pretendem abolir a autoridade pela autoridade - basta lembrarmos do estágio intermediário da "ditadura do proletariado", em que o poder do Pai se maximiza para se extinguir. Em um dos depoimentos que deu ontem, Raúl nos contou como na sua primeira apresentação acadêmica de relevo, teve o material de arquivo que pesquisava roubado por um dos que dividia a mesa com ele. Naquele momento, diz ele, percebeu que haveria de se armar contra isso. De nada valia ter uma relação de exclusividade com o objeto de pesquisa, na medida em que qualquer outro, apropriando-se dele, podia registrar esta propriedade (i.e., publicando) antes e tomar a exclusividade (a soberania, a autoridade) sobre ele para si. Contingência ou acaso, o fato é que se aquele momento foi um verdadeiro kairós, o tempo da oportunidade, o momento propício, mas também o instante do risco, em que - para usar uma figura que Antelo usou ontem - deve-se agarrar a Fortuna pelos cabelos - e foi o que ele fez. Raúl percebeu que o esquema da propriedade, da exlusividade, só servia para reforçar o poder dos que já detinham poder, a autoridade dos que já detinham a autoridade, e decidiu partir para uma outra relação com o objeto, uma relação que não mais tentasse encará-lo sob o signo da possibilidade da perda (i.e., sob o signo da própria negação da experiência com ele, o que permite justamente, como explica Adorno, trocá-lo por outro equivalente como uma mercadoria), uma relação que fosse, ao contrário, uma relação singular, que não negasse o objeto, mas que produzisse com ele uma experiência única e irrepetível: uma marca, não uma cerca. O objeto de pesquisa, agora, ainda poderia ser roubado, mas não a experiência que se produziu no contato do crítico Raúl Antelo com ele. Qualquer um (e ainda mais hoje com as facilidades que a internet proporciona) pode se apropriar do material de arquivo que Antelo juntou para escrever Maria con Marcel, qualquer um pode inclusive escrever uma história da relação entre Maria Martins e Marcel Duchamp - mas ninguém pode escrever Maria con Marcel. Aqui se entende o melhor o "interesse" com que o próprio Raúl caracteriza seu trabalho em Crítica Acéfala, característica salientada ontem por Joca Wolff: trata-se de um inter-esse, um entre-ser entre o sujeito e o objeto, aquilo que lança o homem ao mundo, ou melhor, aquilo que possibilita a própria idéia de mundo, mas jamais uma propriedade. É por isso que Raúl Antelo não é um Pai e não produz filhos: o que ele "ensina" não é como se apropriar de um objeto, não é um "método" em sentido estrito, o que ele "ensina" é que só uma experiência singular e irrepetível com o objeto interessa, só ela faz história, história que não se pode acumular, herdar ou transmitir, mas apenas viver. Em Raúl Antelo, toda a vã discussão sobre a relação entre teoria e prática faz água: nele há uma obra que se confunde com a própria vida: a das experiências singulares e irrepetíveis. Nele, percebemos a possibilidade de viver naquela "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias" de que falava Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago, a realidade do "matriarcado de Pindorama", a única que interessa."
Não sei como alguém lá em Washington não explica ao Obama que assim ele não agrada nem aos republicanos - que não vão estar satisfeitos enquanto não voltarem ao poder, mesmo que sua propaganda raivosa termine com um maluco qualquer tentando matar esse presidente "estrangeiro" e nem aos democratas - que não precisam eleger um presidente que promova uma "corrida ao topo" que começa com um aplauso entusiasmado a demissões em massa de professores "ineficientes" em Rhode Island.
Sobre educação queria reproduzir aqui um belo texto que li recentemente no blogue do Alexandre Nodari:
"Ontem, dia 5 de março, aconteceu um simpósio em homenagem aos 60 anos de Raúl Antelo, meu orientador, que já caracterizei como um "jagunço de posse da eletricidade". No evento (O trabalho crítico: Raúl Antelo, escrever a leitura, organizado por Susana Scramim), diversos ex-orientandos, mediados por figuras de peso, como Eneida Maria de Souza e Luz Rodríguez-Carranza, analisaram a obra de Antelo, e deram seus depoimentos. Ao coordenadar a segunda mesa, Eneida chamou a atenção para a heterogeneidade das abordagens e dos trabalhos dos ex-orientandos, observando que via ali uma relação não entre Pai e filhos, mas, talvez, entre tio e sobrinhos. A aparente simplicidade do comentário pode esconder a sua profundidade: mas, de fato, nele, Eneida captou o que está em jogo no trabalho de Raúl Antelo - a construção do Matriarcado. O Matriarcado não é o domínio das mulheres, o Matriarcado é a organização social baseada no filho do direito materno, isto é, na qual quem exerce a figura do "Pai" não é o que concebe, mas o irmão da mãe, o tio. O Matriarcado representa a abolição do Patriarcado, e de tudo que deriva dele: a autoridade, a propriedade, a herança - e, com ela, a tradição. Daí a centralidade da figura da "Acefalia" nos trabalhos de Raúl: a acefalia representa o fim da cabeça, do caput, da autoridade, do Pai. Daí também que não encontremos nele referências positivas ao "socialismo" ou ao "comunismo", regimes que pretendem abolir a autoridade pela autoridade - basta lembrarmos do estágio intermediário da "ditadura do proletariado", em que o poder do Pai se maximiza para se extinguir. Em um dos depoimentos que deu ontem, Raúl nos contou como na sua primeira apresentação acadêmica de relevo, teve o material de arquivo que pesquisava roubado por um dos que dividia a mesa com ele. Naquele momento, diz ele, percebeu que haveria de se armar contra isso. De nada valia ter uma relação de exclusividade com o objeto de pesquisa, na medida em que qualquer outro, apropriando-se dele, podia registrar esta propriedade (i.e., publicando) antes e tomar a exclusividade (a soberania, a autoridade) sobre ele para si. Contingência ou acaso, o fato é que se aquele momento foi um verdadeiro kairós, o tempo da oportunidade, o momento propício, mas também o instante do risco, em que - para usar uma figura que Antelo usou ontem - deve-se agarrar a Fortuna pelos cabelos - e foi o que ele fez. Raúl percebeu que o esquema da propriedade, da exlusividade, só servia para reforçar o poder dos que já detinham poder, a autoridade dos que já detinham a autoridade, e decidiu partir para uma outra relação com o objeto, uma relação que não mais tentasse encará-lo sob o signo da possibilidade da perda (i.e., sob o signo da própria negação da experiência com ele, o que permite justamente, como explica Adorno, trocá-lo por outro equivalente como uma mercadoria), uma relação que fosse, ao contrário, uma relação singular, que não negasse o objeto, mas que produzisse com ele uma experiência única e irrepetível: uma marca, não uma cerca. O objeto de pesquisa, agora, ainda poderia ser roubado, mas não a experiência que se produziu no contato do crítico Raúl Antelo com ele. Qualquer um (e ainda mais hoje com as facilidades que a internet proporciona) pode se apropriar do material de arquivo que Antelo juntou para escrever Maria con Marcel, qualquer um pode inclusive escrever uma história da relação entre Maria Martins e Marcel Duchamp - mas ninguém pode escrever Maria con Marcel. Aqui se entende o melhor o "interesse" com que o próprio Raúl caracteriza seu trabalho em Crítica Acéfala, característica salientada ontem por Joca Wolff: trata-se de um inter-esse, um entre-ser entre o sujeito e o objeto, aquilo que lança o homem ao mundo, ou melhor, aquilo que possibilita a própria idéia de mundo, mas jamais uma propriedade. É por isso que Raúl Antelo não é um Pai e não produz filhos: o que ele "ensina" não é como se apropriar de um objeto, não é um "método" em sentido estrito, o que ele "ensina" é que só uma experiência singular e irrepetível com o objeto interessa, só ela faz história, história que não se pode acumular, herdar ou transmitir, mas apenas viver. Em Raúl Antelo, toda a vã discussão sobre a relação entre teoria e prática faz água: nele há uma obra que se confunde com a própria vida: a das experiências singulares e irrepetíveis. Nele, percebemos a possibilidade de viver naquela "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias" de que falava Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago, a realidade do "matriarcado de Pindorama", a única que interessa."
Comments
(só não gosto muito de jogos de palavra como inter-esse, me lembra demais certos vícios de comunicólogos)
na Eca muita coisa se queimou num incendio recente. parece que havia manuscritos do glauber rocha, que um professor "emprestou" extra-oficialmente do arquivo da familia, e guardava na sala dele.