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Prosa minha: vida de cachorro


Fim de conto, homenagem ao nosso querido, saudoso Totó:
"Enquanto a companheira se prepara para fugir pela porta que abre, o velho cão em pele e osso recosta a cabeça pesada sobre as patas em cruz e cai num sono profundo embalado pelo zumbido dos carros lá fora. Sonha com um gato malhado de olhos amarelados repugnantes, um pombo arrogante cheio de penas eriçadas, deliciosos chinelinhos peludos e sua verdadeira querida dona, que no sonho tinha um pedaço de pão besuntado de manteiga e um osso sujo de sangue em cada mão e cheirava a laranja podre, a cigarro apagado, a benzina e água de colônia, a pipoca e lã, urina e sabão e bosta de cachorro e chamava com a voz doce de amor e alegria. fiu, fiu, totooó, vem cá lindinho vem... E no sonho o cão e a dona saíam juntos pela rua, ele se deliciando com cada poste e cada canto cheio de cheiros bons e os vira-latas com os olhos queimando de inveja rosnando com o pêlo das costas arrepiados latindo seis pernas, meleca de coleira... e os dois desfilando triunfalmente, ele cheirando cada poste e canto e cobrindo com uma catarata de urina aromática cada ponto estratégico e voltando para casa lindo glorioso feliz um cão com dono dono do mundo, e o gato repugnante e o pombo arrogante e o chinelo peludo cruzando a sua frente despudoradamente, convidando para o prazer da indignação esbaforida e a sua verdadeira querida dona solta a guia da coleira e aí..."

Comments

Phoebe said…
Olá Paulo,
Gostei desse seu saudoso e sarnoso Totó.
Os meus votos de um lindíssimo ano novo.
Obrigado, Phoebe, para você também desejo tudo de bom!

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