“Aconteceu há muitos anos atrás num reino distante no vale de um rio antigo que hoje corre debaixo da terra. Lá vivia um príncipe-menino, que apesar de príncipe era mandado por todo mundo: pelos pais, pelos avós, pelos irmãos mais velhos e até pelo pessoal do palácio. O menino tomava puxão de orelha quando falava alto e palmatória quando falava baixo, bofetão quando falava demais e beliscão quando falava de menos, peteleco quando falava mentira e cocão quando dizia a verdade. Tinha uma lista comprida de coisas que ele não podia fazer: não podia comer nem demais nem de menos, não podia esquecer nem os tamancos no quintal nem o turbante no banheiro, não podia dormir deitado de barriga para baixo nem comer em pé encostado no guarda-corpo da varanda. A vida desse príncipe-menino era assim: só aborrecimento e contrariedade.
No primeiro dia da primavera em que ia fazer 13 anos, o príncipe-menino encontrou um cartãozinho no chão do jardim do palácio. O cartãozinho cabia na palma da mão era feito de um marfim branco bem fino com letras pretas marchetadas assim:
SOBERANO
ABSOLUTO
O príncipe-menino limpou e guardou na mão direita aquele cartãozinho. Dali em diante a vida dele e de todos à sua volta mudaria para sempre.
Primeiro foi a mãe, que chegou reclamando de alguma coisa que o menino tinha esquecido espalhada no chão do quarto. Quando viu o cartão, se pôs de joelhos aos pés do filho e disse, “Perdão, Venerado Amo, pela ousadia. O vosso desejo é sempre e antes de tudo uma ordem!” e saiu correndo para a cozinha para preparar ela mesma o prato favorito do filho para o almoço. O pai do príncipe menino detestava e era até meio alérgico ao tal prato, mas nem bem começou a reclamar, viu o cartão e disse, “Tereis quando e o quanto quiserdes da comida que vos agrade, Excelentíssimo Magnífico!” e passou então a deixar o filho dormir nas suas almofadas favoritas com a sua coberta de seda.
O príncipe-menino não era bobo e entendeu o que acontecia quando as pessoas viam o cartãozinho. Em dois palitos já usava e abusava do cartão. Mandou a irmã mais velha engraxar as botas dele com a língua; fez seu professor escrever 300 vezes na lousa, ‘O príncipe-menino é gênio sem igual na história da humanidade’; comeu sorvete antes do almoço 13 dias seguidos; mandou pôr no banheiro um assento com pele de coelho forrado com pena de ganso; judiou dos avós já velhinhos fazendo eles carregarem o neto já meio gordo pela rua; obrigou a melhor banda de música do reino a tocar a música que ele mais gostava cinco horas sem parar e gastou uma imundície de dinheiro com livrinho de mulher pelada.
Mas poder assim absoluto sobre todas as coisas parece que cansa. O mundo se abria para o príncipe-menino tão rápido e fácil que a fome virou indigestão e o gosto, enjoo. O enfado fez do príncipe um menino infeliz outra vez. E da infelicidade enfastiada o menino-príncipe só saiu quando arrumou uma paixão de corpo e alma. Essa paixão, como tanta paixões, nasceu de um ódio visceral, uma ojeriza feroz às baratas.
Então o príncipe-menino concentrou seu poder ilimitado e inquestionável na empreitada de varrer completamente das cidades, campos, florestas e desertos do reino aquele bichinho que lhe dava calafrios de asco. Montou 300 milícias de 300 homens, mulheres e crianças; todo mundo armado com tamanco, sandália, chinelo ou até botina nos pés e nas mãos, caçando barata 24 horas por dia 7 dias por semana. Todas as noites chegavam de todos os cantos do reino montanhas terríveis de baratas assassinadas, trazidas à praça central da capital para queimar em fogueiras imensas que iluminavam a cidade em polvorosa com os gritos do povo fanatizado: “Morte, morte às malditas baratas!” E um esquadrão de fiscais implacáveis vigiava todas as entradas e saídas do reino para não deixar nenhum cascudo estrangeiro entrar vivo no reino. E durante um ano inteiro a energia do povo e o dinheiro do governo estavam voltados fazer valer o lema da campanha “Barata boa é barata morta”, lançada com festa e fanfarra pelo príncipe-menino, sempre com o seu cartãozinho agarrado na palma da mão.
Só que mesmo depois de um ano de massacre as baratas, indiferentes, insistiam em aparecer impunemente nos cantos mais insuspeitos do reino para a consternação geral do povo, envolvido na paixão do menino ou com medo de despertar a raiva do príncipe que eles chamavam agora de Soberano Absoluto.
E o Soberano Absoluto juntou 300 sábios que mergulhavam em livros e tratados escritos nos 4 cantos do mundo para ver um jeito de derrotar o inimigo que insistia em recusar a extinção. Tradutores de todas as línguas do mundo passavam noite e dia debruçados sobre volumes vetustos de todo tamanho e formato em busca de uma solução final para a Questão das Baratas até descobrirem um livrinho empoeirado no fundo de uma biblioteca esquecida nos confins de um outro reino distante que contava de um predador imbatível com um apetite insaciável por baratas: o Escorpião Prateado.
E o príncipe-menino mandou uma expedição de 300 sábios, guerreiros, caçadores e rastreadores experientes até as inóspitas ilhas rochosas no fim do mundo, onde vivia o tal terrível Escorpião Prateado. E um ano depois, só um dos 300 expedicionários voltou, com um casal de escorpiões prateados trancados num cofrinho de madeira decorada. Doente e fraco, esse último sobrevivente expedicionário – um rastreador humilde – morreu no dia seguinte sem poder contar o que acontecera com seus companheiros de viagem.
O próprio Soberano Absoluto fez questão de cuidar pessoalmente do criatório, mandando separar os filhotes logo após o nascimento para não deixar os pais comerem a própria cria. Depois de 30 dias de procriação feroz, o Soberano Absoluto montou 13 batalhões com 13 escorpiões cada, soltos nas 13 províncias do reino. E em 13 dias os escorpiões prateados ferroaram e comeram todas as baratas do reino. No décimo quarto dia, os 13 batalhões, agora com mais de 100 escorpiões prateados cada um, atravessaram os portões da capital ainda enfurecidos de fome e desejo de esvaziar na primeira coisa viva que encontrassem seus ferrões inchados de peçonha mortal.
E o Soberano Absoluto também teria morrido naquele dia não fossem várias pessoas se atirarem na sua frente para receber as ferroadas mortais em seu lugar. Com muito custo ele conseguiu fugir do castelo e da cidade, só com a roupa do corpo e o cartãozinho na mão. E do alto da serra nos arredores da cidade assistiu à devastação absoluta: gente, bichos de casa e de rua, insetos, pássaros, e ratos e tudo mais o que fosse vivo estava agora estirado pela rua, inertes, devorados pelos milhares de bichinhos que reluziam prateados ao sol do meio dia e comendo ali mesmo pariam mil gotinhas prateadas que corriam para debaixo dos cadáveres inchados para fugir da fúria faminta dos pais.
Cansado, o príncipe-menino se deitou sobre as pedras brutas da colina, fechou os olhos e caiu num sono profundo recheado de dois sonhos.
Primeiro sonhou sua vida de trás para frente – a cada dia um pouco mais jovem, desaprendendo, diminuindo, recobrando as feições de menino pequeno e depois de bebê, voltando-se em si mesmo até se transformar num recém desnascido, encolhidinho dentro da barriga de sua mãe. E lá dentro, naquele mundo aquático escuro e tranqüilo, o príncipe-menino continuava a se desintegrar à medida em que cada par de células se desunia até ser de novo em embrião, que se separou em duas metades desiguais que continuaram se afastando para trás até se dissolver nos corpos dos seus pais. E o príncipe então continuava sonhando que estava incrustado de novo ao mesmo tempo no corpo do pai e da mãe, que continuavam rejuvenescendo, desaprendendo e encolhendo-se em moços e jovens e meninos crianças cada vez menores até que entravam dentro das suas duas avós e separavam-se depois em quatro e assim em progressão infinita. Até que o Soberano Absoluto se dividiu numa legião de grãos de pó microscópico, infinito e imortal e vivia dentro de cada grão dessa imensa legião espalhada pelo mundo, continuando o jogo de desmanches infinito, pois o tempo nesse primeiro sonho do príncipe-menino era igual ao nosso tempo acordado – eterno, em movimento constante e implacável.
Depois veio o segundo sonho: depois de matar e comer tudo, os escorpiões prateados matavam-se e comiam-se uns aos outros com a mesma fúria louca até desaparecerem eles mesmos por completo ferroando-se a si mesmos um a um até deixar cidade e reino completamente desertos. Aí o príncipe-menino sonhou que acordava do seu sonho e largava mão do cartãozinho e descia o morro e voltava à capital do reino para reconstruí-lo, não como o Soberano Absoluto, mas como um rapaz homem como outro qualquer, mais feliz do que triste, capaz de aceitar os limites desse mundo, da sua gente e do seu próprio corpo como um cavalo regalado que não se olha os dentes. E esse segundo sonho era tão bom que o príncipe-menino não quis acordar nunca mais, e continuou a sonhando esse mesmo sonho tranqüilo até o fim dos seus dias, um velhinho deitado sobre as pedras brutas do alto das colinas em volta de sua cidade segurando bem firme na mão direita o seu Cartãozinho do Soberano Absoluto.”
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