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Voltar atrás para seguir em frente: Sobre a Cultura do Estupro

O capítulo 22 do Deuterônimo, livro do velho testamento e também da Torá, trata,na sua metade, de regras referente ao trato de animais domésticos. A segunda metade do capítulo trata do que chamaríamosem termos contemporâneos de "cultura do estupro". Ei-los:

13 Se um homem tomar uma mulher por esposa, e, tendo coabitado com ela, vier a desprezá-la,
14 e lhe atribuir coisas escandalosas, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher e, quando me cheguei a ela, não achei nela os sinais da virgindade;
15 então o pai e a mãe da moça tomarão os sinais da virgindade da moça, e os levarão aos anciãos da cidade, ã porta;
16 e o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a este homem, e agora ele a despreza,
17 e eis que lhe atribuiu coisas escandalosas, dizendo: Não achei na tua filha os sinais da virgindade; porém eis aqui os sinais da virgindade de minha filha. E eles estenderão a roupa diante dos anciãos da cidade.
18 Então os anciãos daquela cidade, tomando o homem, o castigarão,
19 e, multando-o em cem siclos de prata, os darão ao pai da moça, porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. Ela ficará sendo sua mulher, e ele por todos os seus dias não poderá repudiá-la.
20 Se, porém, esta acusação for confirmada, não se achando na moça os sinais da virgindade,
21 levarão a moça ã porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão até que morra; porque fez loucura em Israel, prostiruindo-se na casa de seu pai. Assim exterminarás o mal do meio de ti.
22 Se um homem for encontrado deitado com mulher que tenha marido, morrerão ambos, o homem que se tiver deitado com a mulher, e a mulher. Assim exterminarás o mal de Israel.
23 Se houver moça virgem desposada e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela,
24 trareis ambos ã porta daquela cidade, e os apedrejareis até que morram: a moça, porquanto não gritou na cidade, e o homem, porquanto humilhou a mulher do seu próximo. Assim exterminarás o mal do meio de ti.
25 Mas se for no campo que o homem achar a moça que é desposada, e o homem a forçar, e se deitar com ela, morrerá somente o homem que se deitou com ela;
26 porém, ã moça não farás nada. Não há na moça pecado digno de morte; porque, como no caso de um homem que se levanta contra o seu próximo e lhe tira a vida, assim é este caso;
27 pois ele a achou no campo; a moça desposada gritou, mas não houve quem a livrasse. em juizo, entre sangue
28 Se um homem achar uma moça virgem não desposada e, pegando nela, deitar-se com ela, e forem apanhados,
29 o homem que se deitou com a moça dará ao pai dela cinqüenta siclos de prata, e porquanto a humilhou, ela ficará sendo sua mulher; não a poderá repudiar por todos os seus dias.
30 Nenhum homem tomará a mulher de seu pai, e não levantará a cobertura de seu pai.

Essas são as velhas regras do patriarcado, regras que estão na base das relações sexuais entre homens e mulheres no cristianismo e no judaísmo. Elas dividem as vítimas de violência sexual em dois grupos bem contrastados: as mulheres dignas [virgens de Israel] e aquelas indignas. Dignos de nota também a vontade de distinção entre a mulher que grita por socorro e a que supostamente não o faz e a interpolação financeira nos vários casos. Escrevi sobre o assunto lendo três contos de Faulkner, Rulfo e Rosa, contos que me chamaram a atenção pela existência neles de mulheres que chamei [citando a Rosa] de "Órfãs de Dinheiro". Leiam esse trecho acima, meditem e pensem no desafio que é desmontar esse ferrolho na sociedade ocidental - principalmente quando moralistas e vendedores de sacanagem vivem reforçando o dito ferrolho. Leiam, quem sabe, os três contos ["Esses Lopes", "Wash" e "Es que somos muy pobres"] para entender o que é colocar a inteligência crítica da narrativa de ficção a favor deste desmonte. E sigamos em frente.

Comments

Anonymous said…
Essas velhas regras estão sendo lidas com um montão de anacronismos. Não há, em nenhum momento, incentivo ao estupro da suposta moça indigna ou de qualquer outra. Aliás, o que se tem é pena de morte para o homem que violentar uma moça. Não vejo relação entre a bagunça atual e a estrutura patriarcal bíblica porque, embora fosse excessivamente dura em vários aspectos, a lei mosaica primava pela organização. E organização é o que não se vê no mundo atual onde cada um usa o argumento que bem entende para continuar fazendo aquilo que simplesmente quer fazer.
(tata)
Olha, Tata, as velhas regras qualificam casos diferentes de estupro baseados no status da mulher [casada ou solteira, virgem ou não] e na situação particular do encontro entre o homem e a mulher em questão. O homem que violenta a moça não é sempre condenado à morte [e há também uma presença significativa de compensações financeiras devidas aos pais] e os atenuantes no caso tem a ver justamente com a situação da mulher e a circunstância do encontro. Com o trecho do Deuterônimo, significativamente colocado no mesmo capítulo que trata de questões relacionadas ao trato de animais domésticos, eu quis:
1. Chamar a atenção de que esse não é absolutamente um problema especificamente brasileiro - há muitos estudos sobre essa tal cultura do estupro nos EUA, por exemplo.
2. Lembrar que a tal resposta na tal pesquisa tem base nessa diferenciação entre "tipos" de mulheres, que está lá na base da cultura ocidental.
3. Lembrar que o aumento significativo do fundamentalismo religioso [a leitura ao pé da letra dos textos bíblicos] reforça um anacronismo tremendo ao querer reproduzir literalmente as normas do texto bíblico. Isso, sim, trata-se de anacronismo!
Anonymous said…
Sobre o ponto 3, concordo. Sobre os outros, tem alguma coisa que eu ainda preciso entender direitinho antes de falar. rs... Amanhã, quando eu estiver ACORDADA, comentarei então.
(tata)
Anonymous said…
Relendo o que está de fato escrito: - não existe diferença entre a moça que grita e a que não grita porque isto simplesmente não é mencionado. O que se tem é a ideia de que qualquer moça nesta situação, estando no campo e sendo pega por um homem que a despose a força, gritará.
- se homem e mulher forem pegos, segundo o que está no texto, eles serão obrigados a se casar. mas neste caso, não existe a ideia de que alguém tenha sido forçado a alguma coisa.
- as punições severas dizem respeito à traição e ao estupro.
Quando eu digo que "as velhas regras estão sendo lidas com um montão de anacronismos", estou querendo dizer o mesmo que você no ponto 3 da resposta.
As pessoas estão se radicalizando e isto não é de hoje. Tenho um palpite: talvez fosse bastante proveitoso estudar o efeito da bagunça e da desesperança no cérebro humano. Religiões e textos sagrados, no momento, são só mais uma pedra que estava a volta de quem procurava algo para arremessar. Pronto, acho que agora me expressei com clareza (ou não).
(tata)

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