Skip to main content

Música: Atando duas pontas do mundo muçulmano

Bom vamos começar do começo aqui neste meu quintal onde aquele campeonato de chutadores de bola não entra. 

O qawwali é uma canção de devoção sufi com uma tradução de nada mais que 700 anos. Na tradição Urdu [do Paquistão] são tocadas por uma banda sentada no chão com umas sanfonas/caixas, percussão e mais um monte de cantores batendo palma e fazendo o coro. Tradicionalmente são só homens, o que interessa porque a versão que me meteu nessa confusão é de uma mulher com uma banda de Mali que também tem integrantes do sexo feminino. 

As transcrições do Urdu para o nosso alfabeto são diferentes então há quem chame esse qawwali de “Dam mast kalandar mast mast” ou “Dum mustt Qalandar Mustt Mustt” e mais um monte de misturas dessas duas versões. Qalandar é o título dado a uma espécie de santo/monge mendicante da tradição sufi, desses que dançam rodando como o que aparece no clip do filme Decasia que repostei aqui recentemente. Aqui o Qalandar é além do santo aquele que acima de tudo “ama o mundo criado por deus”. Enfim, essa enrolação toda para dizer o refrão da música [“dum mustt qalandar mustt mustt”] diz algo como: “Every breath is bliss for the one who loves.” O pessoal gosta de ficar se gabando de saudade, mas Português tem pontos cegos como qualquer outra língua. Esse Dam/Dum do refrão da é traduzido como “breath” no sentido do ar que a gente puxa para dentro da gente. Como o substantivo “respiro” eu só conheço para pias e banheiras, não dá. “Cada respiração é um prazer para o que ama” é uma porcaria de tradução. Além do mais respiração é breathing [não é bem algo que se possa contar em unidades] e ainda por cima é uma palavra danada de comprida e desajeitada para traduzir um simples monossílabo “Dam/Dum”. Já imaginou alguém traduzir aquela canção suavemente intimidadora “Every Breath You Take” do Police [e que nome de banda infeliz!] como “Cada Vez Que Você Respira”?

Bom, voltando à vaca fria, a versão que mais me interessa de Mustt Mustt é a que amarra de um lado o Tinariwen, formada por Tuaregs do deserto do Mali que toca guitarras/violões “quase que do Mississippi” [e fariam um disco e uma capa de disco excelentes com o Zé Ramalho] e do outro lado uma cantora de origem paquistanesa. São portanto duas pontas de um mundo muçulmano muito mais rico e aberto que um bando de terroristas de filme americano atadas nessa versão hipnótica de “Mustt Mustt”:



Essa canção ficou famosa pelos lados daqui do ocidente por causa da maior figura moderna no qawwali, Nusrat Fateh Ali Khan, que você pode conferir num concerto em homenagem a Nelson Mandela na Inglaterra:


A performance é intensa mas nem se compara com a farra que eram os qawwalis de Nusrat Fateh Ali Khan num ambiente menos de concerto que de festa, com um bando de malucos que vai se juntando na frente do palquinho dançar uma dança meio-sufi/meio-punk – tem uns que até caem no chão. O único problema é que o som é muito fraco e mal dá para ouvir as sanfonas/caixas:




Voltando ao Tinariwen [que significa "Gente do Deserto"], seu líder, Ibrahim Ag Alhabib, cresceu em campos de refugiados na Argélia e na Líbia [chegou a treinar militarmente numa milícia Tuareg organizada por Kadafi nos anos 80]. O grupo tocou na abertura da Copa do Mundo da África do Sul representando a Argélia, embora no Brasil todo mundo só se lembre do Waka-Waka rebolante da Shakira...

Bom, deixa para lá... 

Comments

Popular posts from this blog

Diário do Império - Antenado com a minha casa [BH]

Acompanho a vida no Brasil antes de tudo pela internet, um "lugar" estranho em que a [para mim tenebrosa] classe m é dia brasileira reina soberana, quase absoluta, com seus complexos, suas mediocridades e sua agressividade... Um conhecido, daqueles que ao inv és de ter um blogue que a gente visita quando quer, prefere um papel mais ativo, mandando suas "id éias" para os outros por e-mail, me enviou o texto abaixo, que eu vou comentar o mais sucintamente possível: resolvi a partir de amanh ã fazer um esforço e tentar, al ém do blogue, onde expresso minhas "id éias" passivamente, tentar me comunicar diretamente com as pessoas por carta... OS ALUNOS DE UNIVERSIDADES PARTICULARES DERAM UMA RESPOSTA; E A BRIGA CONTINUOU ... 1 - PROVOCAÇÃO INICIAL Estudar na PUC:............... R$ 1.200,00 Estudar no PITÁGORAS:..........R$ 1.000,00 Estudar na NEWTON:.....R$ 900,00 Estudar na FUMEC:............ R$600,00 Estudar na UNI-BH:........... R$ 550,00 Estudar na

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia institucional católica não conseguem [ou não tentam] entender muito o sistema