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Existe algo mais parecido com um festim de bruxas que um espetáculo de exorcismo coletivo?

Quando a histeria coletiva sobre bruxas e bruxos atacou as colônias dos puritanos ingleses na América em 1692, 25 vilas e cidades denunciaram por bruxaria entre 144 e 185 pessoas entre 5 e 80 anos de idade, a maioria delas mulheres e em 4 meses enforcaram 14 mulheres, 5 homens e 2 cachorros. Os puritanos [como aliás todos os europeus naqueles tempos] eram obcecados com bruxaria, que era a segunda ofensa mais séria no código de justiça da colônia, depois apenas da idolatria e antes da blasfêmia [3], assassinato [4], envenenamento [5] e bestialidade [6]. E não é novidade que a misoginia estava no centro dessa paranóia coletiva. Como dizia um famoso manual de caça às bruxas, "quando uma mulher pensa sozinha, ela pensa o mal".

No centro desse caldeirão de neuroses explodindo em um surto violento de psicose coletiva, um jovem pastor puritano formado em Harvard: Cotton Mather, o Padre Vieira do período colonial daquelas bandas empobrecidas das Américas. Cotton Mather, cheio de furor religioso e paranóia, descrevia com requinte os primeiros julgamentos com gente voando, chorando lágrimas de sangue e arrancando os cabelos e clamava por "the speedy and vigorous prosecution" [um processo de julgamento rápido e vigoroso] contra a epidemia de adoradores de satã naquela roça que deveria ser uma Nova Inglaterra, melhor e mais pura. Para Cotton Mather a infestação de bruxas e bruxos ali era prova da pureza da fé do seu grupo, que era um alvo natural para o tinhoso: "where will the Devil show most malice but where he is hated, and hateth most?" [Onde mostraria o Demônio sua máxima malícia senão onde ele é mais detestado e destesta mais?].

O jovem Mather era filho do presidente de Harvard, Increase Mather [que nome], um homem hoje meio esquecido mas que se encontrava no ápice de seu prestígio. E foi o pai que, num escândalo numa sociedade rigidamente patriarcal, deu a nota dissonante e disse: "I would rather judge a witch to be an honest woman than judge an honest woman to be a witch" [Preferiria inocentar como uma mulher honesta uma bruxa que culpar uma mulher honesta de ser uma bruxa]. Ambos vinham do mesmo universo de crenças e acreditavam piamente em bruxaria e no capeta, mas Increase Mather admitia a possibilidade de uma justiça falha e dizia que, no caso, preferia a leniência ao excesso punitivo. 

E assim vivemos hoje em tempos de neuroses coletivas intensificadas ao máximo pela internet com suas fotos de caçadores de leões famosos, meninos afogados, cinegrafistas chutadoras de meninos, decapitações ao vivo, malucos de comício para todos os desgostos, infidelidades denunciadas em tempo real e hordas de indignados/revoltados com sede de sangue passando de um objeto de ódio para o próximo feito baratas tontas. São imagens e narrativas que berram altíssimo e exigem de todos nós um estado permanente de indignação extrema cujo combustível é uma disposição nauseante para sentir asco, repugnância, repulsão. As bruxas e os capetas de hoje são outros e diversos, mas os linchamentos reais ou virtuais abundam. A impressão é que tudo deveria ser considerado crime hediondo e todo mundo tem que ir para a cadeia para sempre até prova em contrário ou então fuzilado, apedrejado, excomungado, linchado, espancado.

Mas existe algo mais parecido com um festim de bruxas que um espetáculo de exorcismo coletivo?


Eis o trailer de um filme de Alex de la Iglesia que nos dá, digamos, uma perspectiva ibérica sobre esses delírios bruxescos. e suas fundas origens européias. Um filme muito longe de perfeições comportadas mas com momentos fantásticos:


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