Uma Gota de Fenomenologia ou Auto das Flores
escovar a
história a contrapelo
Estou neste momento tomando um café na mesa de um
restaurante assentado num pedaço de terra no município de Moctezuma no estado
de Minas Gerais no Brasil. Esse restaurante está aqui faz mais ou menos 20
anos. Foi construído com a permissão do dono desse pedaço de terra, que o
herdou de seu pai, que o comprou de um ex-proprietário de uma fazenda que
incluía outros terrenos envolta desse. Esse antigo dono, por sua vez, herdou a
antiga fazenda de seu pai, que a comprou de um outro fazendeiro que por sua vez
herdou a terra de seu pai, que a ocupou. Esse sujeito que chegou aqui há seis
gerações atrás foi o primeiro proprietário desse pedaço de terra. Antes ela não
pertencia a ninguém, o que não quer dizer que ninguém vivia por aqui. Quem
vivia por aqui antes desse primeiro proprietário documentado foi destituído de
seu direito de usar esse pedaço de terra para caça, cultivo ou moradia.
Essa destituição a partir da qual inaugurou-se a longa
cadeia de proprietários desse pedaço de terra onde se construiu esse
restaurante onde tomo meu café só foi possível pelo uso de coerção com base em
violência ou pelo menos na possibilidade do uso de violência. Essa primeira
destituição aconteceu e está registrada pelo menos de forma implícita em cada
título de propriedade de cada pedaço de terra daqui até Quebec e daqui até a
Patagônia. É impossível portanto tomar um café em algum lugar nesse continente
que não seja um documento vivo daquele roubo, daquela destituição, daquela
violência.
Quando compramos e vendemos pedaços de terra com ou
sem construções em cima, em cidades ou no campo estamos nos inserindo numa
longa linha que começa em um roubo. Quando pagamos aluguel, estacionamento, um
quarto de hotel, um assento no cinema, uma mesa num bar, uma cama no hospital
ou uma consulta no médico, também estamos sendo inseridos nessa mesma linha.
Há, entretanto, uma diferença imensa, fundamental entre o lado pelo qual somos
inseridos nela. Melhor talvez imaginar essa longa linha como uma comprida faca,
uma espécie de faca inescapável, onde estaremos sempre colocados em uma de duas
posições, ou do lado do cabo ou do lado da lâmina.
A maioria de nós viverá feliz sem se dar conta de nada
disso, por conveniência própria ou alheia. Entre a minoria que der conta desse
fatos, alguns se ofenderão, principalmente com ver algo tão feio e sujo ser
apresentado como uma condição inescapável, e dirão que colocar as coisas dessa
maneira é distorcer a realidade, enquanto outros aceitarão o fato candidamente e
dirão, cinicamente, que já que não há saída o melhor é garantir que estaremos
do lado que segura o cabo. Apenas uma minoria da minoria, um pequeno grupo
seleto, será permanentemente tocado pela força desses fatos terríveis. Esses
serão os protagonistas do nosso Auto das Flores.
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