Foto minha: "Urna de Dias" |
7 - Uma gota de fenomenologia
ou algo em comum
“… è un’impresa senza speranza
rivestire un uomo di parole,
farlo rivivere in una pagina scritta…”
Primo Levi, Il sistema periodico
Tomo em minhas mãos uma entre as muitas autobiografias que encontro nas
prateleiras da biblioteca que costumo frequentar todos os dias. Dentro do
livro, o eu que conta a história não é idêntico ao eu que é contado. Um
terceiro eu, que assina a capa do livro e prega uma foto com sorriso de Mona
Lisa na orelha, não é idêntico a nenhum dos outros dois. Longe dali, um quarto
eu acorda, se levanta, tira o pijama e escova os dentes olhando sonolento para
o espelho – ele também não é idêntico a nenhum dos outros três. Enquanto esse
quarto eu escova preguiçosamente os dentes, um quinto eu aparece estampado no
espelho do banheiro. Esse quinto eu encara sonolentamente o quarto – mas nem
esses dois eus, frente a frente dentro do banheiro, são idênticos.
Ainda assim tenho certeza que todos esses cinco eus têm algo em comum.
Não são um exército de um homem só. São um imenso eu expandindo-se e fatiando-se
num batalhão, que não é composto por apenas cinco eus. Há outros. Por exemplo,
os cinco eus dentro desse texto que você agora lê não são idênticos ao seus
alter-egos espalhados por aí. São dez, quinze, vinte. São muitos e todos
diferentes mas insisto que tenho certeza que todos eles têm algo em comum. Não
quero chamar esse algo em comum de “núcleo” porque não acho que ele esteja
necessariamente no centro de nenhum deles. Por enquanto me contento então com o
termo “algo em comum”.
Procurando definir melhor esse algo em comum, tomei de empréstimo há uma
semana a tal autobiografia. Tenho-a agora aqui em minhas mãos. Com ela subo na balança
da farmácia que fica no caminho entre minha casa e a biblioteca. Em seguida deixo
o livro no chão e me peso novamente. Uma simples subtração me dá o peso do
livro: exatamente meio quilo. Ontem ele pesava 496 gramas. Anteontem, 494
gramas. Há três dias, 493 gramas. Prevejo que amanhã a autobiografia sobre a
qual escrevo terá 508 gramas. Se estiver certo, temo que esse livro se
transformaria, após um século de uso diário, no equivalente a um buraco negro.
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