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Um longo trabalho de luto

1. Uma das maiores dificuldades em se inserir numa cultura que você não viveu é que muitas vezes você não sabe o quê perguntar e é pego de suspresa ao pegar de surpresa os outros por não ter tratado de coisas que a eles parecem tão elementares. Nem veio à sua mente perguntar a pergunta nem muito menos veio à mente do seu interlocutor que essa seria uma das coisas que você não saberia.
2. Assim um jovem brasileiro há vinte anos atrás iria para os Estados Unidos sem cartão de crédito e se espantaria ao ter que fazer um depósito de $5,000 para poder ficar num quarto de hotel pelo qual ele já pagara no Brasil por não poder apresentar um cartão de crédito no momento do registro.
3. Assim nunca passaria pela cabeça de uma pessoa que fez toda a sua carreira acadêmica nos Estados Unidos que ela precisaria trazer uma carta assinada e autenticada em cartório do seu ex-chefe confirmando que ela tinha trabalhado por nove anos como professor. E nem passaria pela cabeça de um brasileiro que alguém pagaria caro para perder uma semana de trabalho e um bom e precioso dinheirinho para cruzar o globo terrestre de sul para o norte e não apresentaria entre os seus documentos comprobatórios esse comprovantezinho que parece tão banal.
4. Assim meu sonho de voltar para Belo Horizonte virou fumaça. Esperei nove anos por um concurso compatível, que só apareceu ironicamente quando o Brasil parece que vai derreter. Com certeza não tenho tempo para esperar mais nove anos e não há outra instituição viável aqui em Belo Horizonte. Nunca mais vou voltar, fora as férias. É fato, agora. Meus filhos crescerão lá naquele cemitério das almas e serão integralmente estadounidenses, por bem e por mal. E eu viverei até uma aposentadoria [que nunca vai acontecer] muito longe da minha terra. O motivo: eu não forneci um documento comprobatório que comprovasse o óbvio. A ausência de um prosaico pedaço de papel muda completamente as perspectivas da minha vida daqui para frente.
5. O negócio agora é pegar uma faca bem afiada e arrancar de vez esse meu longo e dolorido banzo. Acabou. Tenho uma família e uma pancada de contas e dívidas e não posso me dar o luxo de ficar sonhando com coisas impossíveis. Sei que não vale pena viver com os olhos grudados na falta.
6. O curioso foi sentir que todo o curso foi para mim um campo minado. Cheguei para fazer a prova e vi embasbacado muitos dos candidatos arrastando imensas malas cheias de livros. Eu tinha concentrado tudo o que precisava num caderno que escolhi para me preparar para o concurso e qual não foi a aminha surpresa ao ouvir a ordem de que era proibido consultar qualquer coisa que não fosse um livro? A sorte no caso me soprou uma oportunidade: o tema sorteado para a prova era um para o qual eu já tinha me preparado bem, e mais, me preparado recentemente. Com as ideias e os dados básicos [sobrenomes e datas aproximadas por décadas] escrevi 9 páginas de texto que recebeu notas que teriam me feito passar.
7. Mas nem toda a ironia é benfaseja: vejam que o documento que me faltou era justamente aquele que comprovava que durante nove anos eu tinha dado meu sangue e minha alma a um outro sonho que também virou fumaça, neste caso por motivos bem feios. Aquele fracasso parecia ter se combinado com a primeira oportunidade  viável de volta. Mais um difícil trabalho de luto pela frente, sem tempo para frescuras.
8. Dirigindo o carro emprestado na volta escuto um pastor com aquela dicção típica da IURD falando sobre um jejum dos desesperados - para aqueles que haviam tentado de tudo e tudo havia dado errado e não viam uma voz no fim do túnel. Neste sábado trazendo para o templo o estômago vazio, o coração cheio de fé e [o pastor não diz isso] a carteira cheia de reais, o pastor prometia uma luz no fim do túnel. Infelizmente eu só teria como levar o estômago vazio e não vai dar para me juntar aos outros desesperados nesse "toma lá da cá" [essa a expressão usada por ele] em que o raio do espírito santo nos iluminaria o fim do túnel,

Comments

Anonymous said…
Professor, meus sentimentos. A bu(r)rocracia do Brasil e uma desgraca: arruina vidas.
Um abraco do seu aluno Paulo.
Ah, sério, preciso de um tempo para digerir isso e poder dizer algo minimamente reconfortante.
Por enquanto, fica o abraço de um amigo e admirador.
Renata Lins said…
Caro Paulo, nem sei expressar como sinto por isso tudo. Como tenho raiva da absurda burocracia brasileira faz com que, todo dia, oportunidades se percam. Um grande abraço é o que dá, por ora.
Obrigado, amigos! O momento é de luto mesmo. Com dois filhos para criar não dá para parar. Ainda mais porque as inscrições para os empregos na grigolândia se encerram mais ou menos no dia 12.

PS. Paulo, é impressionante: para revalidar seu diploma de doutorado você precisa de cópia autenticada do diploma em si, do histórico escolar e da ata da defesa, todos com um selo do consulado brasileiro mais próximo do local onde o doutorado foi realizado [no meu caso Los Angeles]. Para quê a ata da defesa se o diploma precisa de todo esse paramento? Eles me disseram que era para evitar fraude. Não é por nada que o Brasil é um país com baixíssimo nível de fraudes... ;). Ah, e o consulado só aceita money order e só envia o material para endereços próximos. Doutorado na Califórnia, vivendo na Nova Inglaterra, você imagina a ginástica.
Uma pena para a instituição aqui do Brasil, que te perdeu. A experiência me ensinou que a vida dá as voltas mais mirabolantes é justo quando a gente desiste. Quem sabe. (tata)
Tomara, Tata. Tomara.
Diego said…
Puxa, Paulo, que péssima notícia. Lamento muito! Talvez seja um sinal de que o Brasil não está valendo a pena...
Que nada, Diego, eu é que vacilei feio. Podia ter ficado em primeiro no concurso e não "comprobatei" as coisas que podia ter "comprobatado" facilmente. É aprender com a pancada e seguir em frente. Da próxima vez comprovo tudo que fiz na minha carreira com reconhecimentos de firma e autenticação em cartório.
Que história. Muito triste, mas ao mesmo tempo parece uma comédia de humor negro.
Minha experiência foi parecida, no único concurso que prestei. Fiquei assustada com a preparação dos outros candidatos, me senti amadora. E, mesmo levando todos os documentos que imaginei que pediriam, fica muita insegurança de fazer alguma bobagem, porque é muita coisa.

Por isso e outros detalhes, desisti dos concursos.

Meus amigos que continuaram nesse caminho foram quase todos para cidades distantes de onde moravam. De certo modo, parece que a prioridade é passar, não importa onde. Depois de alguns anos de prática nas Federais, dá pra tentar uma transferência ou prestar outro concurso (dessa vez com mais chance, porque vir de outra federal conta muito).

Você já pensou em outra cidade? Curitiba, Florianópolis, São Carlos... Tenho um amigo no departamento de Espanhol em São Carlos, é muito bonito lá.




Sabina, meu problema é que eu tenho uma família que hesita um pouco em voltar para o Brasil e por isso Belo Horizonte seria uma oportunidade excepcional. Eu gostei muito de Curitiba quando passei uns dias por lá, por exemplo, mas os paranaenses sempre falam tão mal da cidade que fico achando que tinha um bando de gente horrível escondida em todos os cantos da cidade esperando eu ir embora! :) Dá um trabalhão descobrir onde é melhor morar, qual escola é mais legal para os filhos e coisas assim.
Paulo, ainda não digeri esse seu post. Parece que foi comigo o troço.

Avise se estiver em Belo Horizonte no final do ano para trocarmos umas ideias.

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