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Sobre a Citação como Uma Forma de Traição Além de Qualquer Tradução

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Um exemplo fascinante de uma tradução que sai dos trilhos por motivos que nada têm a ver com a tradução em si é a seguinte frase famosa escrita pelo dramaturgo cômico romano de origem africana Terêncio [Publius Terentius Afer]:

Homo sum: humani nihil a me alienum puto.

Destrinchando rapidamente a frase:
homo = homem;
sum é “sou”;
humani = aquilo que é humano
nihil é “nada”;
alienum é “alheio”
a me é “a mim” ou “para mim”
puto é a primeira pessoa singular do verbo putare [nada de pensar em bobagem]
que significa aqui “considerar” [dele veio nosso “imputar”]

A famosa frase foi traduzida para o português elegantemente [não sei por quem] assim:

Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.

Não há nada de errado com a tradução, não é mesmo?  

Numa busca simples no Gúgol encontramos a frase sendo citada num documento do ministério público [do Rio de Janeiro], dois saites de um mesmo psicoterapeuta, uma revista [TAXI], um saite que ensina filosofia, um blogue de “espiritualidade crista”, um forum sobre jogos, colunas de jornais, etc. Todos usam a frase para apoiar algum tipo de abertura humanista a todas as variedades de existência humana ou para fazer algum vago apelo pela curiosidade nos assuntos humanos.

O problema é que essa não é uma frase de Terêncio, mas uma frase escrita por Terêncio e inserida nos diálogos de uma comédia, Heauton timorumenon (“o que se pune a si próprio”, que por sinal dá uma vontade danada de des-traduzir como “O masoquista” …). A frase é uma fala de um personagem que se intromete constantemente na vida dos outros e está cinicamente defendendo o seu direito de se meter onde não é chamado dizendo alguma coisa mais ou menos assim:

“Eu sou do mundo, então nada da vida de todo mundo não me diz respeito”.

Em outras palavras, não se trata de uma exortação ao interesse humanista pelo outro, mas de uma simples e cínica exortação comicamente grandiosa à fofoca e sua irmã siamesa de origem italiana [bisbigliatore] o ato de bisbilhotar.
 
Minha tradução ali em cima é feia e desajeitada, assim como traduzir Heauton timoroumenos como “O masoquista” seria uma piada muito metida à besta. A tradução primeira, que levou a tantos usos comicamente equivocados, é bastante razoável. O desvio de rota acontece porque o cinismo despudorado de um personagem se transforma em máxima de um venerando escritor romano, exemplo do humanismo clássico de Terêncio ou dos romanos em geral, que se interessariam nobremente por tudo que é da existência humana e coisa e tal.

Como é que uma tradução dessa frase famosa lidaria com essa tendência a fazer dela uma outra coisa, principalmente já que essa outra coisa já faz parte do que poderíamos chamar de “infortuna crítica” da peça há séculos? Sinceramente não sei. Quem é um mero tradutor frente a esses maremotos de mal-entendidos, repetidos milhares de vezes como se repetem hoje na velocidade da luz da internet de citação em citação, nessa maçaroca/avalanche que é o discurso insosso de políticos, juízes, acadêmicos, especialistas e burocratas e seus programas de entrevistas no rádio e na televisão, suas coleções de citações “bonitas” nas revistas semanais ou especializadas, nas colunas de jornais, no noticiário, etc.? 

E nem tudo nessa des-leitura da tal famosa frase é consenso comum ou recheio de linguiça. A tradução para o inglês é “I am human: nothing human is alien to me.”  Num artigo anunciando aquilo que seria seulivro Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers, Kwame Anthony Appiah glosou da seguinte maneira a tal frase da peça de Terêncio:

Our guide to what is going on here might as well be a former African slave named Publius Terentius Afer, whom we know as Terence. Terence, born in Carthage, was taken to Rome in the early second century B.C., and his plays - witty, elegant works that are, with Plautus's earlier, less-cultivated works, essentially all we have of Roman comedy - were widely admired among the city's literary elite. Terence's own mode of writing - which involved freely incorporating any number of earlier Greek plays into a single Latin one - was known to Roman littérateurs as "contamination."
It's an evocative term. When people speak for an ideal of cultural purity, sustaining the authentic culture of the Asante or the American family farm, I find myself drawn to contamination as the name for a counterideal. Terence had a notably firm grasp on the range of human variety: "So many men, so many opinions" was a line of his. And it's in his comedy "The Self-Tormentor" that you'll find what may be the golden rule of cosmopolitanism - Homo sum: humani nil a me alienum puto; "I am human: nothing human is alien to me." The context is illuminating. A busybody farmer named Chremes is told by his neighbor to mind his own affairs; the homo sum credo is Chremes's breezy rejoinder. It isn't meant to be an ordinance from on high; it's just the case for gossip. Then again, gossip - the fascination people have for the small doings of other people - has been a powerful force for conversation among cultures.
Sinceramente, acho que por trás de toda a sofisticação-made in NYT está mais uma des-leitura do texto de Terêncio, tão equivocada como qualquer outra das outras que encontrei na internet em português ou em inglês. Talvez haja alguma verdade involuntária em toda a des-leitura, em toda a citação que trai sua fonte, como em toda tradução que trai o texto de onde parte. Talvez haja um desvelo involuntário da bestagem e pomposidade do próprio Appiah nessa tentativa dele de fazer do que diz um personagem tão besta e pomposo como Chremes um profundo e grandioso chamado pela contaminação gloriosa entre culturas desde um cheiroso escritório em Princeton. Seria obrigação dos latino americanos saber que essa alegre festa da contaminação cultural não se dá entre iguais – que nem todo escravo africano é educado para escrever elegantes comédias latinas – e que as miscigenações culturais e raciais estão quase sempre mais para estupro que para romance. E é prova da nossa triste condição colonial que somos capazes de repetir desde gabinetes mais humildes o elogio cosmopolita de si mesmo de Appiah e Rushdie sem entender que esse auto-elogio simplesmente não nos inclui além de, no máximo, uma barraquinha vendendo pão-de-queijo no Central Park. 

Mas essa tristeza que não é de forma alguma inaproveitável, sendo para mim aquela tristeza que Primo Levi evoca no final de um lindo conto chamado “Lillít”, que termina assim:

“... la tristezza non mendicabile che cresce sulle rovine delle civiltà perdute
[a tristeza irremediável que cresce das ruínas das civilizações perdidas].

Advirto aos incautos que não me absolvo de ter talvez traído o original de Primo Levi ao ter traduzido e citado o final do seu conto aqui.  Meu consolo é que, como não ofereço com minha operação tradutora/citadora/traidora nenhum tipo de letrado "empoderamento" [palavrinha infeliz] triunfante, não espero começar aqui no Às moscas um tsunami de mal-entendidos.

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