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Lendo Marx com óculos de professor de literatura


O Carlos Marques quer te ver dançar
Vamos ler Marx e ele nos põe sempre para dançar entre o significado das coisas em si e o significado dessas mesmas coisas quando elas caem no mundo, interagindo umas com as outras. Esses dois significados nunca coincidem mas não são totalmente diferentes. O tango que os dois significados dançam é em si um todo instável, movente, sujeito a chuvas e trovoadas constantes, em mutação perene.

Fazem parte dessa coreografia complexa, por exemplo, três conceitos: o valor [o hieroglifo social das coisas, que se manifesta apenas nas relações social entre mercadorias], o valor de uso [definido pela utilidade das coisas, pelo que essas coisas podem fazer quando caem no mundo] e ainda o valor de troca. Olha esse trechinho [sinto muito, em inglês, mas não deve ser difícil achar em português]:

Could commodities speak, they would say: our use-value may be a thing that interests men. It is no part of us as objects. What, in fact, does belong to us as objects is our value. Our natural intercourse as commodities proves it. In the eyes of each other we are nothing but exchange-values.

Penso no que se espera hoje da prosa de um economista ou sociólogo ou filósofo e não consigo deixar de pensar que o movimento geral no sentido da profissionalização e especialização das disciplinas acadêmicas foi um tremendo atraso. Nos seus piores momentos a profissionalização é um eufemismo para regimentação e a especialização para estreiteza. Em geral, mesmo em textos interessantíssimos, as duas coisas fizeram da prosa não ficcional uma maçaroca difícil de digerir, uma espécie de tortura voluntária. Explico que isso não tem nada que ver com um elogio da “facilidade” – Marx é uma leitura difícil – mas com o simples fato de que a complexidade não precisa ser impressa num pacote indigesto de palavras emboladas numa prosa triste e feia. 

Comments

Pedro da Luz said…
A velha dialética, onde os conceitos não estão cristalizados mas num dinamismo eterno como mo mundo efetivo ou real. Para mim há dois termos manipulados pelo velho alemão pesado, que são a infraestrutura e a superestrutura, o todo e o particular, que estão em eterna retro-alimentação. O problema me parece que sempre hierarquizados, apesar de dinãmicos...
Estou relendo com o livro do David Harvey como guia e gostando bastante. Raymond Williams tem um texto maravilhoso sobre a questão da estrutura/super-estrutura que eu recomendo. Eu não sei se esse livro do Williams foi traduzido para o português [Marxismo e Literatura], mas se for o caso eu posso até arrumar um pdf do capítulo.
Unknown said…
Paulo, a compartimentação das ciências e dos saberes diminui a densidade do conhecimento, pois impossibilita o trânsito e a conexão de ideias e reflexões. Edgar Morin há muito propõe o pensamento complexo como uma forma de agir contra a especialização. Sob essa perspectiva, o especialista não deixaria de existir, todavia, sua formação consistiria num saber eclėtico, de exercício contínuo da criatividade, da reflexão, da renovação; daquilo a que ele denomina como o bem-pensar. Esse bem-pensar não representa uma fórmula pronta para as perguntas, as dúvidas, os problemas. Consiste apenas numa maneira de pensar sobre as questões importantes simplesmente porque pensar bem leva ao bem-viver; porque o bem-pensar desloca o pensamento comodista e apático, aguça a sensibilidade, a criatividade, a reatividade, e pode gerar proposições outras aos velhos problemas. Dessa forma, a leitura de Marx ou de outros autores, especialmente os clássicos, seria renovada, atualizada, esgarçada (mas nunca esgotada), possibilitando acréscimos ao armazém humano: literário, filosófico, químico, político, biológico, matemático. artístico, dos afetos, da convivência etc.
Vivian, não poderia estar mais de acordo com tudo o que você disse. O que eu vejo é uma organização, uma estrutura que valoriza e recompensa o conformismo carreirista e a ultra-especialização e forma [ou deforma] uma classe profissional. O sistema americano na minha área é um exemplo: os professores são contratados mas não efetivados e uma minoria sonha com uma efetivação que depende de uma total sujeição às "regras do jogo". É uma máquina de construir conformismo e é difícil sair dela sem ser profundamente afetado. Vou procurar conhecer melhor o trabalho do Edgar Morin!

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