...
Otilina sempre adorara ao seu filho como um santo ou herói que salvara a família do abismo abominável da pobreza e da vergonha. Com os olhos marejados e a voz embargada, ela, até bem pouco tempo, não perdia a oportunidade de fazer o mesmo discurso, longo e constrangedor, em que Eduardo e ela, Otilina, figuravam como mártires:
“Criei e eduquei meus dois filhos, o Eduardo e a irmã, sozinha. E agüentei tudo, sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém. Agüentei meus próprios pais me olhando com um olhar superior e condescendente, querendo decidir o nosso futuro todo sem sequer me consultar. Agüentei todos os falsos amigos, cochichando e rindo pelas minhas costas, fazendo pelas minhas costas comentários falsamente chocados, cheios de inveja e prazer, sobre a nossa desgraça. Ficamos os três sozinhos no mundo depois do desastre. O bom de cair assim, como nós caímos, de uma vez, de repente, é que assim a gente descobre o valor de cada um e descobre que quase ninguém vale nada nesse mundo e aprende de um jeito que não dá para virar o rosto e tentar se enganar que não é bem assim. Éramos nós três contra o mundo inteiro, mas valeu a pena não se entregar. Valeu o esforço porque, graças ao talento e à perseverança do meu filho, nós nos reerguemos da lama em que aquele monstro nos atirou, de uma maneira que ninguém imaginava, nem meus pais nem todos os meus falsos amigos. Porque nós fomos muito além. Valeu a pena cada minuto de cada hora de cada dia do meu esforço naqueles primeiros anos tão duros, quando os dois ainda eram quase crianças. Valeu a pena a minha luta e a minha insistência para que nós três não aceitássemos a lama em que os outros queriam nos atirar, para que nós não nos conformássemos e nos rebaixássemos como o resto do mundo queria.”
A casa nova, “de cinema”, na cidade ainda quase um canteiro de obras, onde viveram os três com o pai anos de glória e deslumbramento dos quais Eduardo tinha vagas recordações, seria vendida em leilão. Eduardo ainda não completara doze anos quando seu pai migrou repentinamente das colunas sociais para as páginas policiais dos jornais da cidade e desapareceu completamente, sem deixar rastros além de uma penca de negócios absurdos completamente falidos e um rombo nas finanças da família que lhe custariam os primeiros oito anos da vida adulta para tapar. A casa seria comprada pela família de um colega de escola, numa cidade em que todos os que valiam a pena conhecer se conheciam desde a infância. Nos primeiros anos, Eduardo evitava qualquer proximidade com o tal menino que aceitava a distância de bom grado.
Dois meses depois do “desastre” eles já moravam na casa dos avós. Eduardo travava então com a mãe um embate diário. Otilina rondava sua mesa de estudo, fingindo arrumar um quadro torto na parede ou um arranjo de flores num vaso e, sem olhá-lo, perguntava:
- E então, qual é o seu nome?
- Eduardo Viotti, Ele respondia. Ela testava:
- Leão? Ele dizia:
- Não; Viotti.
O filho tentava sufocar seu ressentimento e concentrar-se de novo nos livros; sua mãe, paciente e inflexível, contava dez minutos no relógio da cozinha e voltava a chamar o filho com o sobrenome do pai:
- Eduardo Leão? O menino, agora absorto no estudo, levantava instintivamente a cabeça e, ao perceber o ato falho, suspirava quase desesperado. Era o sinal para que Otilina, tranqüila e implacável, repetisse sua homilia diária:
- Para você eu sei que isso deve parecer uma brincadeira, Eduardo. Aliás eu sei que no fundo tudo para você ainda é uma brincadeira – você só tem doze anos e na verdade não passa mesmo ainda de uma criança. Mas isso aqui, meu filho, não é brincadeira, infelizmente. Infelizmente nós três dependemos disso, dessa ‘brincadeira’, para poder começar de novo. Os erros daquele monstro, terríveis, absurdos, imperdoáveis, são dele; não são nossos. Não são. Nós não vamos fugir, meu filho. Não fomos nós que erramos, ainda que sejamos nós os que estão aqui pagando por todo esse desastre. Mas não é justo que você ou eu ou a sua irmã paguemos pelo resto das nossas vidas pelas inconseqüências e traições daquele monstro. E eu sei, meu filho, que você só vai realmente entender a importância de tudo isso bem depois, quando talvez já seja tarde demais. Otilina fazia então uma longa pausa dramática sublinhada por um suspiro e arrematava:
- Então, não entenda nada agora. Se você não quiser ou não puder, meu filho, não entenda nada agora. Nem tente. Mas, mesmo sem tentar, meu filho, mesmo sem compreender o sentido disso tudo, você vai ter que aprender.
Otilina fazia então mais uma longa pausa dramática e recomeçava, calma, paciente e inflexível:
- Eduardo Viotti? O menino começando a entrar na puberdade levantava os olhos injetados de rancor e voltava-se mudo para a página que devia ler, mas que agora era um emaranhado incompreensível de letras e espaços em branco. A mãe ignorava o ódio e a frustração que Eduardo pensava transmitir com absoluta clareza em seu silêncio taciturno e chamava mais uma vez:
- Eduardo Leão? Com olhos enterrados no livro que já não lia, Eduardo fingia que aquele não era o nome e o sobrenome do seu registro civil e de batismo; como se Eduardo Viotti Leão não fossem nome e sobrenomes pelos quais ele tinha sido chamado por todos que conhecia, toda a sua vida, até dois meses atrás. Alheia ao filho, a mãe retomava, implacável, indiferente, ainda mais uma vez:
- Eduardo Viotti? E o filho levantava mais uma vez a cabeça, humilhado, um rato de laboratório cujo ressentimento subia até a garganta com o sorriso de aprovação condescendente da mãe, uma bola dura de ressentimento que ainda lhe amargava a boca trinta nove anos mais tarde.
Para Eduardo, Otilina tinha sido mais um obstáculo a superar. Só ela não via a futilidade daquele exercício diário sufocante. Que sentido fazia apagar aquele nome se dias antes do “desastre”, há dois meses atrás, seus avós recebiam naquela mesma casa honesta de classe média, entre orgulhosos e humilhados, a visita mensal da sua família? Chegavam então todos em grande estilo. Seu pai, principalmente, chamava a atenção até dos vizinhos, atraindo admiração e inveja com seu carro alemão, seu terno italiano, seu relógio suíço, seus charutos cubanos, suas frases em francês impecável e sua carteira, sempre recheada de dinheiro e sempre inquieta. E sua mãe não ficava atrás, comportando-se na casa dos pais como se fosse uma estrela de cinema, vestida de branco, de luvas, imaculadamente penteada e maquiada, olhando para o resto da família embasbacada com empáfia condescendente.
Os dois meses que antecederam a mudança para a casa dos avós tinham sido ainda piores. Eduardo chegava da escola no fim da tarde e ia relutante até o quarto da mãe. Lá encontrava Otilina invariavelmente sentada na beira da cama desfeita, os olhos brilhando, confusos, com medo. Logo que o via ela tomava ares de uma heroína de melodrama, os mesmos vestidos brancos agora deliberadamente sujos e amarrotados, o olhar fixo perdido na janela por onde a cidade acendia suas primeiras luzes amareladas. Num desses primeiros dias quando Eduardo chega da escola, Otilina lhe pergunta, sem tirar os olhos da janela:
- Sabe no que é que eu venho pensando, meu filho? Com a mão ela o puxa para o seu lado e responde, solene, à própria pergunta: Eduardo, eu vou me matar – um suspiro, uma lágrima solitária rola devagar pelo lado direito rosto – e quero que você se mate comigo.
Eduardo escuta a própria voz respondendo de imediato, por instinto, um pouco rápido demais:
- Não, mãe, eu não quero me matar. O complemento vem ainda mais apressado: E eu não quero que você se mate também, mãe, nunca. Olhos fixos na janela, a mãe continua como se não estivesse escutado:
- Vamos então combinar tudo. Vamos pensar como é que nós vamos fazer isso; como é que você gostaria de fazer isso?
Ele repete:
- Eu não quero me matar, mãe. Eu não quero morrer. Otilina vira-se, segura seu rosto com as duas mãos e diz, enquanto rola uma segunda lágrima, igual, do lado esquerdo:
- O que você acha? Fazemos tudo junto, com as mãos dadas, para que nenhum dos dois se sinta sozinho? Ele quase se irrita em seu desespero:
- Não, mãe, não. Não. Pára com isso. Ela prossegue:
- Que bela lição nós dois daríamos ao monstro, você não acha? A voz lhe vem embargada de amor e ódio intensos (será possível separar?) que ele sente naquele momento pela sua mãe:
- Não, mãe. Ela insiste mais uma vez:
- Nós dois nos damos as mãos e nos jogamos lá embaixo agora, que tal?
Ele se pega pensando que seria muito melhor usar o estoque absurdo de remédio de dormir que a mãe guarda no armário do banheiro – a imagem da mãe saltando no ar e puxando-o pela mão passa-lhe pela mente num relâmpago de horror – tomariam uma cartela cada um e se deitariam na cama, de mãos dadas, esperando o sono chegar. O pânico sobe-lhe pela boca do estômago e lhe aperta o coração – ele vacilaria no último instante e a sua solidão no momento em que ela caísse sozinha e se estatelasse lá embaixo seria pior que a morte. O menino fala agora tentando resguardar sua sinceridade, que ele sente persistentemente erodida por uma vontade de manipulação calculada que ameaça revelar-se na escolha cuidadosa de cada palavra:
- Mãe, eu ainda não tenho nem doze anos. Eu quero viver, muito. Eu te amo, mãe. Eu te amo muito, mais que tudo nesse mundo. Eu não quero morrer. E nem quero que você morra.
Finalmente ela desaba em lágrimas e o abraça chorando. Ele sente as mãos de Otilina acariciando as suas costas suavemente e, com o rosto enterrado nos cabelos desgrenhados da mãe, ele não consegue evitar a constatação perversa que lhe dá náuseas: bom sinal. A mãe fala agora em um tom de voz familiar, de resignação:
- Tudo bem, meu filho. Tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Otilina sempre adorara ao seu filho como um santo ou herói que salvara a família do abismo abominável da pobreza e da vergonha. Com os olhos marejados e a voz embargada, ela, até bem pouco tempo, não perdia a oportunidade de fazer o mesmo discurso, longo e constrangedor, em que Eduardo e ela, Otilina, figuravam como mártires:
“Criei e eduquei meus dois filhos, o Eduardo e a irmã, sozinha. E agüentei tudo, sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém. Agüentei meus próprios pais me olhando com um olhar superior e condescendente, querendo decidir o nosso futuro todo sem sequer me consultar. Agüentei todos os falsos amigos, cochichando e rindo pelas minhas costas, fazendo pelas minhas costas comentários falsamente chocados, cheios de inveja e prazer, sobre a nossa desgraça. Ficamos os três sozinhos no mundo depois do desastre. O bom de cair assim, como nós caímos, de uma vez, de repente, é que assim a gente descobre o valor de cada um e descobre que quase ninguém vale nada nesse mundo e aprende de um jeito que não dá para virar o rosto e tentar se enganar que não é bem assim. Éramos nós três contra o mundo inteiro, mas valeu a pena não se entregar. Valeu o esforço porque, graças ao talento e à perseverança do meu filho, nós nos reerguemos da lama em que aquele monstro nos atirou, de uma maneira que ninguém imaginava, nem meus pais nem todos os meus falsos amigos. Porque nós fomos muito além. Valeu a pena cada minuto de cada hora de cada dia do meu esforço naqueles primeiros anos tão duros, quando os dois ainda eram quase crianças. Valeu a pena a minha luta e a minha insistência para que nós três não aceitássemos a lama em que os outros queriam nos atirar, para que nós não nos conformássemos e nos rebaixássemos como o resto do mundo queria.”
A casa nova, “de cinema”, na cidade ainda quase um canteiro de obras, onde viveram os três com o pai anos de glória e deslumbramento dos quais Eduardo tinha vagas recordações, seria vendida em leilão. Eduardo ainda não completara doze anos quando seu pai migrou repentinamente das colunas sociais para as páginas policiais dos jornais da cidade e desapareceu completamente, sem deixar rastros além de uma penca de negócios absurdos completamente falidos e um rombo nas finanças da família que lhe custariam os primeiros oito anos da vida adulta para tapar. A casa seria comprada pela família de um colega de escola, numa cidade em que todos os que valiam a pena conhecer se conheciam desde a infância. Nos primeiros anos, Eduardo evitava qualquer proximidade com o tal menino que aceitava a distância de bom grado.
Dois meses depois do “desastre” eles já moravam na casa dos avós. Eduardo travava então com a mãe um embate diário. Otilina rondava sua mesa de estudo, fingindo arrumar um quadro torto na parede ou um arranjo de flores num vaso e, sem olhá-lo, perguntava:
- E então, qual é o seu nome?
- Eduardo Viotti, Ele respondia. Ela testava:
- Leão? Ele dizia:
- Não; Viotti.
O filho tentava sufocar seu ressentimento e concentrar-se de novo nos livros; sua mãe, paciente e inflexível, contava dez minutos no relógio da cozinha e voltava a chamar o filho com o sobrenome do pai:
- Eduardo Leão? O menino, agora absorto no estudo, levantava instintivamente a cabeça e, ao perceber o ato falho, suspirava quase desesperado. Era o sinal para que Otilina, tranqüila e implacável, repetisse sua homilia diária:
- Para você eu sei que isso deve parecer uma brincadeira, Eduardo. Aliás eu sei que no fundo tudo para você ainda é uma brincadeira – você só tem doze anos e na verdade não passa mesmo ainda de uma criança. Mas isso aqui, meu filho, não é brincadeira, infelizmente. Infelizmente nós três dependemos disso, dessa ‘brincadeira’, para poder começar de novo. Os erros daquele monstro, terríveis, absurdos, imperdoáveis, são dele; não são nossos. Não são. Nós não vamos fugir, meu filho. Não fomos nós que erramos, ainda que sejamos nós os que estão aqui pagando por todo esse desastre. Mas não é justo que você ou eu ou a sua irmã paguemos pelo resto das nossas vidas pelas inconseqüências e traições daquele monstro. E eu sei, meu filho, que você só vai realmente entender a importância de tudo isso bem depois, quando talvez já seja tarde demais. Otilina fazia então uma longa pausa dramática sublinhada por um suspiro e arrematava:
- Então, não entenda nada agora. Se você não quiser ou não puder, meu filho, não entenda nada agora. Nem tente. Mas, mesmo sem tentar, meu filho, mesmo sem compreender o sentido disso tudo, você vai ter que aprender.
Otilina fazia então mais uma longa pausa dramática e recomeçava, calma, paciente e inflexível:
- Eduardo Viotti? O menino começando a entrar na puberdade levantava os olhos injetados de rancor e voltava-se mudo para a página que devia ler, mas que agora era um emaranhado incompreensível de letras e espaços em branco. A mãe ignorava o ódio e a frustração que Eduardo pensava transmitir com absoluta clareza em seu silêncio taciturno e chamava mais uma vez:
- Eduardo Leão? Com olhos enterrados no livro que já não lia, Eduardo fingia que aquele não era o nome e o sobrenome do seu registro civil e de batismo; como se Eduardo Viotti Leão não fossem nome e sobrenomes pelos quais ele tinha sido chamado por todos que conhecia, toda a sua vida, até dois meses atrás. Alheia ao filho, a mãe retomava, implacável, indiferente, ainda mais uma vez:
- Eduardo Viotti? E o filho levantava mais uma vez a cabeça, humilhado, um rato de laboratório cujo ressentimento subia até a garganta com o sorriso de aprovação condescendente da mãe, uma bola dura de ressentimento que ainda lhe amargava a boca trinta nove anos mais tarde.
Para Eduardo, Otilina tinha sido mais um obstáculo a superar. Só ela não via a futilidade daquele exercício diário sufocante. Que sentido fazia apagar aquele nome se dias antes do “desastre”, há dois meses atrás, seus avós recebiam naquela mesma casa honesta de classe média, entre orgulhosos e humilhados, a visita mensal da sua família? Chegavam então todos em grande estilo. Seu pai, principalmente, chamava a atenção até dos vizinhos, atraindo admiração e inveja com seu carro alemão, seu terno italiano, seu relógio suíço, seus charutos cubanos, suas frases em francês impecável e sua carteira, sempre recheada de dinheiro e sempre inquieta. E sua mãe não ficava atrás, comportando-se na casa dos pais como se fosse uma estrela de cinema, vestida de branco, de luvas, imaculadamente penteada e maquiada, olhando para o resto da família embasbacada com empáfia condescendente.
Os dois meses que antecederam a mudança para a casa dos avós tinham sido ainda piores. Eduardo chegava da escola no fim da tarde e ia relutante até o quarto da mãe. Lá encontrava Otilina invariavelmente sentada na beira da cama desfeita, os olhos brilhando, confusos, com medo. Logo que o via ela tomava ares de uma heroína de melodrama, os mesmos vestidos brancos agora deliberadamente sujos e amarrotados, o olhar fixo perdido na janela por onde a cidade acendia suas primeiras luzes amareladas. Num desses primeiros dias quando Eduardo chega da escola, Otilina lhe pergunta, sem tirar os olhos da janela:
- Sabe no que é que eu venho pensando, meu filho? Com a mão ela o puxa para o seu lado e responde, solene, à própria pergunta: Eduardo, eu vou me matar – um suspiro, uma lágrima solitária rola devagar pelo lado direito rosto – e quero que você se mate comigo.
Eduardo escuta a própria voz respondendo de imediato, por instinto, um pouco rápido demais:
- Não, mãe, eu não quero me matar. O complemento vem ainda mais apressado: E eu não quero que você se mate também, mãe, nunca. Olhos fixos na janela, a mãe continua como se não estivesse escutado:
- Vamos então combinar tudo. Vamos pensar como é que nós vamos fazer isso; como é que você gostaria de fazer isso?
Ele repete:
- Eu não quero me matar, mãe. Eu não quero morrer. Otilina vira-se, segura seu rosto com as duas mãos e diz, enquanto rola uma segunda lágrima, igual, do lado esquerdo:
- O que você acha? Fazemos tudo junto, com as mãos dadas, para que nenhum dos dois se sinta sozinho? Ele quase se irrita em seu desespero:
- Não, mãe, não. Não. Pára com isso. Ela prossegue:
- Que bela lição nós dois daríamos ao monstro, você não acha? A voz lhe vem embargada de amor e ódio intensos (será possível separar?) que ele sente naquele momento pela sua mãe:
- Não, mãe. Ela insiste mais uma vez:
- Nós dois nos damos as mãos e nos jogamos lá embaixo agora, que tal?
Ele se pega pensando que seria muito melhor usar o estoque absurdo de remédio de dormir que a mãe guarda no armário do banheiro – a imagem da mãe saltando no ar e puxando-o pela mão passa-lhe pela mente num relâmpago de horror – tomariam uma cartela cada um e se deitariam na cama, de mãos dadas, esperando o sono chegar. O pânico sobe-lhe pela boca do estômago e lhe aperta o coração – ele vacilaria no último instante e a sua solidão no momento em que ela caísse sozinha e se estatelasse lá embaixo seria pior que a morte. O menino fala agora tentando resguardar sua sinceridade, que ele sente persistentemente erodida por uma vontade de manipulação calculada que ameaça revelar-se na escolha cuidadosa de cada palavra:
- Mãe, eu ainda não tenho nem doze anos. Eu quero viver, muito. Eu te amo, mãe. Eu te amo muito, mais que tudo nesse mundo. Eu não quero morrer. E nem quero que você morra.
Finalmente ela desaba em lágrimas e o abraça chorando. Ele sente as mãos de Otilina acariciando as suas costas suavemente e, com o rosto enterrado nos cabelos desgrenhados da mãe, ele não consegue evitar a constatação perversa que lhe dá náuseas: bom sinal. A mãe fala agora em um tom de voz familiar, de resignação:
- Tudo bem, meu filho. Tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Comments
Talvez você pudesse imprimir o conto quando estiver pronto, e me mandar pelo correio. Pode ser assim?
Abraços, e boa semana.