Skip to main content

É insuportável mas é meu

Às vezes a gente escreve uma coisa que acha boa e ninguém gosta. Mesmo assim a gente continua gostando do que escreveu, às vezes. Mas às vezes a gente escreve umas coisas que nem a gente mesmo gosta. Um textos que eu classifico como insuportáveis, mas que, como filhos que a gente odeia mas também ama, a gente é obrigado a suportá-los. Segue abaixo um deles. É engraçado [ou triste] como uma idéia que a gente ser irresistível acaba gerando um texto que a gente mesmo acha insuportável - imagina os outros. Esse foi feito durante a oficina em Paraty mas não foi mostrado lá - afinal a primeira impressão é importante e ninguém quer ficar marcado como "o sujeito dos textos insuportáveis"...

o mundo inteiro entre uma maiúscula e um ponto final

I’m trying to say it all in one sentence, between one Cap and one period.
I’m still trying to put it all, if possible, on one pinhead. I don’t know
how to do it. All I know to do is to keep on trying in a new way
William Faulkner

Enfiar o mundo inteiro entre uma maiúscula e um ponto final, mas só depois de botar aquele vagabundo pra fora de casa e consertar de novo o alarme da minha alegria; aí pronto: é o mundo inteiro entre a maiúscula e o ponto final, ainda que ninguém entenda patavinas de piripitibas e ainda assim se ofendam os stalinistas do grande espírito das letras greco-latinas ocidentais e os stalinistas defensores por procuração dos frascos e comprimidos duas vezes ao dia e estejamos assim todos mal pagos e fodidos; mesmo assim tem que continuar até enfiar o mundo inteiro entre uma maiúscula e um ponto final porque, entre o universo dito e o infinito omitido o ponto final da frase onde cabe o mundo inteiro pode ser possível, sem truques baratos e sem truques raros porque entre populismos e elitismos lá vamos nós nos foder sem receber um tostão outra vez (quem nunca se fodeu mal pago não merece o papel e a caneta que tem muito menos o esplendoroso fracasso que só pode conhecer de perto quem tentar pelo menos umas trinta vezes enfiar o mundo inteiro entre a maiúscula e o ponto final; esses que não reconhecem derrota ou entendem tudo de uma vez e não sabem, por exemplo, nem que o mal existe e não precisa de motivos, que os assassinos e torturadores podem não ter nenhum trauma terrível no fundo do poço da infância, não merecem as florestas de celulose e rios de tinta preta que andam consumindo em vão), e ainda assim tem que ser assim nessa peleja descarnada até o fim porque o silêncio é uma covardia, ainda que socialmente tolerada e até incentivada, imperdoável e, como eu não acredito em reencarnação nem em livros psicografados, tem que ser da maiúscula ao ponto final no espaço de uma vida, que é, admito, um meio-soluço na história da humanidade e um trisco na história do planeta mas é tudo o que temos e, de tudo o que temos a fazer com o pouco tempo e recursos que temos, é o mais bonito e o mais divertido (e só a alegria e a beleza dadas assim completamente de graça têm esse sentido próprio que muita gente insiste em procurar no dinheiro e nos tênis e bolsas que custam um mês de aluguel), mas, veja bem, só depois de botar aquele palhaço para fora de casa e consertar o alarme da minha alegria que estragou desde o dia em que agora-não-vem-ao-caso-quem se instalou de mala e cuia na minha vida como um parêntese parasitário e infeliz, um parêntese que eu vou fechar agora, antes de começar a tentar mais uma vez enfiar o mundo entre uma maiúscula e um ponto final (pronto)

Comments

Gostei do texto.
Que bom! Eu amo e odeio esse texto toda vez que leio...

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...