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Poema meu: Oração

Oração


Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala



Eu não quero nada,
eu não preciso de nada,
não gosto nem desgosto de mais nada,
não prefiro nada.
Dia ou noite, sim ou não,
tudo ou nada, tanto faz.

Me odeie, me ame,
me pise, me engane,
me roube, me mate,
esqueça de mim,
chore por meu nome,
cuspa no meu prato,
conte a verdade,
minta até os ossos.
Nada me afeta,
nada me comove,
nada mais me fere,
nada me alivia,
nada me aborrece,
nada me diverte,
nada me atribula,
nada me dá paz.

Estou morto por dentro, estou livre.
Não tenho mais raiva,
não tenho mais medo.
Matei todos os desejos em mim.
Matei meus sonhos
e meus pesadelos,
a soma de tudo o que não fui.
Bebi meu sangue e comi meu corpo
Apaguei meu rosto
e minha memória.
Morto agora igual por dentro e por fora,
não tenho em mim nenhum sonho
serei adubo de mim,
o estrume das derrotas futuras,
parede sem porta,
serei aquele que morreu por nada,
aquele que não nasceu.

Comments

gostei muito do seu poema,
uns dias passados eu escrevi algo bem mal humorado, do tipo, tenho nojo total por tudo o que existe.
ate de mim...esse tempo que vivemos, me deixa inspirada assim.
Eu me lembro do seu poema, Maria Fernanda, mas não tive coragem de comentar. Essas coisas vêm e vnao e, desde que causem boa poesia, quem sabe? Podem até valer a pena...
Esse poema é muito triste e tbm não é. Porque ele tbm é sobre deixar tudo pra trás, sobre abandonar os desejos, parar de desejar de arder, parar de lutar contra o mundo, contra si mesmo e encontrar a paz. A paz da derrota. Concordo com vc, são os tempos em que a gente vive. Se vc tem sensibilidade, se vc sente as coisas, se vc abre os olhos e vê o que está acontecendo em volta, todo esse inferno, então vc sofre, tem que sofrer. E esse poema é sobre o desejo de parar de desejar para parar de sofrer, imaginando um momento de nirvana, de liberdade que, suponho, nos aguarda com a morte.

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