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Fernando Pessoa e Lima Barreto - Ser outro, ser decadente

João Villaverde [http://joaovillaverde.blogspot.com/] postou no seu blogue o seguinte trecho de Cemitério dos Vivos/Diário do Hospício de Lima Barreto:

“Arrependo-me de tudo, de não ter sido um outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram. Tenho orgulho de me ter esforçado muito para realizar o meu ideal; mas me aborrece não ter sabido concomitantemente arranjar dinheiro ou posições rendosas que me fizessem respeitar. Sonhei Spinoza, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoiésvski, mas me faltou a sua névoa.”

Esse trecho me lembrou o Fernando Pessoa de "Livro do Desassossego" [http://fragmentosdodesassossego.blogspot.com/2005_12_01_archive.html]:

Fragmento 1 – Autobiografia sem factos

“Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a humanidade para sucedâneo de deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a humanidade. Considerei que deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a humanidade, sendo uma mera idéia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da humanidade, com seus ritos de liberdade e igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Assim não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes,naquela distância de tudo a que se chama decadência. A decadencia é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.”

E depois, um pouco mais para frente, acho que realmente respondendo ao Lima Barreto na minha imaginação:

(…)

“Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde. Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.”

Comments

Bordar almofadas é até bonito. E nas almofadas podemos sentar ou deitar.

Pior seriam aqueles artesanatos que ensinam em programas femininos, que são feios e não servem pra nada.
As vezes acho que a feiúra é uma terrível epidemia que assola o planeta.
Gosto de imaginar gente como Lima Barreto e Fernando Pessoa escrevendo essas coisas ao mesmo tempo, dialogando sem se ouvirem uns aos outros, sem querer.
Anonymous said…
Postei a revista. Seu livro, comento nas férias. Gostei.
Bjos.
Obrigado. Duas vezes.
Anonymous said…
Só li este post agora. Achei lindo.

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