Skip to main content

Prosa Minha - Festas Nacionais


Festas Nacionais


Uma vez por ano aqui em Montezuma, no dia 14 de abril, escolhemos alguém da família Moreira para o que chamamos de Aniquilamento Seletivo, Execução Extra-Judicial ou, simplesmente, Festa da Fé. Escolhemos um Moreira porque eles são muitos, se reproduzem com presteza impressionante e não têm predadores naturais, não fazem a menor falta nos outros 364 dias do ano e são simplesmente perfeitos para os nossos festejos.
O coração dos Moreiras, como o conhecemos, é fibroso, mas doce e saboroso. Não recomendaria um assado pois a carne acaba ficando dura e não entranha bem o tempero. Por melhor que seja a aparência do órgão logo depois de extraído de um corpo macerado mas ainda pulsante e, por um breve instante de jorro e gozo, ainda vivo, há que se esmerar na limpeza e preparo do coração. Limpa-se a carne com faca de ponta, corta-se o resto em filetes bem finos e refoga-se no óleo bem quente com alho, cebola e louro. Depois de uns 10 minutos de refogado, basta adicionar um molho bem gordo de Ora Pro Nobis, duas xícaras de água e cozinhar por mais 30 minutos na panela de pressão.
Preparado dessa maneira, o coração de um Moreira é bem mais saboroso que o seu miserável cérebro, uma carne amarga, babosa e de textura arenosa, que moemos e damos aos porcos da cidade porque achamos qualquer desperdício deplorável. De certa forma, como comemos os porcos que alimentamos com o cérebro que moemos, inventamos aqui na nossa pacata cidade aquilo que o sábio Corbisier dizia nos faltar a todos nós brasileiros: “o instrumento que nos torna capazes de triturar o produto cultural estrangeiro a fim de utilizá-lo como simples material prima”. Sinceramente prefiro a resposta simples das crianças: “o mineiro dá o milho, o porco come o milho e o mineiro come o porco”. 

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...