Essas são primeiras impressões sobre o livro Fiat Lux de Paula Abramo. É um primeiro esboço de um texto sobre esse livro que deve fechar o meu livro novo sobre Brasil e México.
1. Fiat Lux chama a atenção logo de cara pela força de conjunto. Não é uma simples seleção de poemas com alguma sugestão vaga de relação temática. Os poemas se encaixam e a ordem deles é importante. Uma história se desenvolve e vai dando ao livro um caráter narrativo singular. Nesse sentido é um livro muito importante, porque nos lembra que a poesia também pode servir para contar histórias de fôlego. Claro que esse contar não é o contar de um romance, muito menos de um romance realista tradicional. É um outro contar que vale a pena conhecer, que vale a pena aprender.
2. Fiat Lux é uma exploração consistente da memória e do passado familiar da autora. Engraçado como o livro de repente me deu aquela impressão do jogo inicial de Tristram Shandy, que se apresenta como um livro de memórias mas não começa com o nascimento do protagonista, e fica revolvendo ao invés disso a vida dos seus familiares antes do seu nascimento, como se grande parte do sentido da existência do narrador não estive em si mas nos que o antecederam. Tristram Shandy é uma comédia e um romance. Fiat Lux é um livro de poemas que quer ir além do relativo autismo de grande parte da lírica do século XX, dando ouvidos à exortação do protagonista do livro, o avô da poeta, que diz em suas cartas: "não olhe tanto para dentro". Ao terminar minha segunda leitura do livro reforçou-se a primeira impressão: Fiat Lux não deixa de ser um livro sobre Paula Abramo, ainda que ela [como personagem inventado ali no papel] não compareça com a força concreta dos seus personagens principais.
3. Isso tudo faz de Fiat Lux um livro muito interessante, mas o livro de Paula Abramo é muito mais do que simplesmente interessante. É uma leitura muito forte, emocionante mesmo. A força do livro estão nas figuras que se levantam e tomam ou retomam vida a partir dele: o padeiro anarquista Bôrtolo Scarmagnan, o húngaro vindo do exército vermelho Rudolf Josip Lauff Scargna, a operária da fábrica de fósforos Anna Stefania Lauff e o militante antifascista e exilado Fúlvio Abramo. Essas figuras que não são heróicas no sentido grandiloqüente de um épico. Nascidos dos versos de Paula Abramo, elas são simplesmente extraordinárias na sua vitalidade e coragem para viver e sonhar. Ao contrário de grande parte da narrativa como a conhecemos hoje em dia, importa muito pouco se essas personagens de Fiat Lux "fracassaram" ou "venceram" em suas lutas. Elas existiram [e existem no livro de Paula Abramo] e é isso o que conta. É mais do que muita gente de carne e osso faz.
4. A força e vitalidade dos personagens e das histórias são frutos do texto poético de altíssima qualidade. Várias passagens são lindíssimas e o são sem poses líricas, sem empostações de voz. A voz de Paula Abramo é extremamente original porque se recusa ao tom e dicção "elevados" [um maneirismo ainda muito comum de quem acha que o poeta é o sal da terra] e a gracinhas bobas que tirariam força dos seus personagens. Não estou aqui descartando outros caminhos, mas chamando atenção para um acerto fundamental desse livro. A voz poética não tem medo de ser direta e objeta e olhar para fora e não tem medo de pensar por imagens e levar seus raciocínios longe. Também não tem medo de palavras "difíceis" que aparecem sem qualquer resquício de pedantismo. Não encaro essas escolhas como a decisão de seguir um determinado caminho, mas como um talento feliz de escolher os melhores caminhos para aquilo que o temperamento do poeta já sugere. Outros poetas, com temperamentos diferentes, só podem fazer poesia que valha a pena de outras formas. Paula Abramo parece que encontrou a forma dela já no seu primeiro livro.
5. Fiat Lux também chama atenção pela coragem de jogar com imagens com uma concentração e paciência para as variações ao redor do mesmo tema que me lembraram aqueles raciocínios impressionantes de João Cabral de Melo Neto. O jogo é diferente porque elas estão dispersas por todos os poemas, geralmente em sequências em itálico com espaçamento diferente no início de cada poema, mas não apenas. A imagem é simples e bela: um fósforo Fiat Lux [quem é brasileiro sabe do que estou falando] que se acende e depois se apaga em uma sequência preciosa de instantes que o poeta observa com cuidado. Sobre isso ainda tenho que escrever mais.
6. Fiat Lux também é um livro com particular senso de urgência. Seu ato de fazer reviver os mortos não é produto nem de nostalgia nem de melancolia. Trata-se de trazer à vida, à minha vida como leitor afortunado, essas pessoas extraordinárias que Paula Abramo inventou com a matéria pulsante da sua própria memória e da história. Agradeço a ela por agora "conhecer" Fulvio, Anna Stefânia, Bôrtolo, Rudof e uma personagem especial, que eu não sei se existiu ou existe fora de Fiat Lux e que abre e fecha o livro com chave de ouro: Angelina.
1. Fiat Lux chama a atenção logo de cara pela força de conjunto. Não é uma simples seleção de poemas com alguma sugestão vaga de relação temática. Os poemas se encaixam e a ordem deles é importante. Uma história se desenvolve e vai dando ao livro um caráter narrativo singular. Nesse sentido é um livro muito importante, porque nos lembra que a poesia também pode servir para contar histórias de fôlego. Claro que esse contar não é o contar de um romance, muito menos de um romance realista tradicional. É um outro contar que vale a pena conhecer, que vale a pena aprender.
2. Fiat Lux é uma exploração consistente da memória e do passado familiar da autora. Engraçado como o livro de repente me deu aquela impressão do jogo inicial de Tristram Shandy, que se apresenta como um livro de memórias mas não começa com o nascimento do protagonista, e fica revolvendo ao invés disso a vida dos seus familiares antes do seu nascimento, como se grande parte do sentido da existência do narrador não estive em si mas nos que o antecederam. Tristram Shandy é uma comédia e um romance. Fiat Lux é um livro de poemas que quer ir além do relativo autismo de grande parte da lírica do século XX, dando ouvidos à exortação do protagonista do livro, o avô da poeta, que diz em suas cartas: "não olhe tanto para dentro". Ao terminar minha segunda leitura do livro reforçou-se a primeira impressão: Fiat Lux não deixa de ser um livro sobre Paula Abramo, ainda que ela [como personagem inventado ali no papel] não compareça com a força concreta dos seus personagens principais.
3. Isso tudo faz de Fiat Lux um livro muito interessante, mas o livro de Paula Abramo é muito mais do que simplesmente interessante. É uma leitura muito forte, emocionante mesmo. A força do livro estão nas figuras que se levantam e tomam ou retomam vida a partir dele: o padeiro anarquista Bôrtolo Scarmagnan, o húngaro vindo do exército vermelho Rudolf Josip Lauff Scargna, a operária da fábrica de fósforos Anna Stefania Lauff e o militante antifascista e exilado Fúlvio Abramo. Essas figuras que não são heróicas no sentido grandiloqüente de um épico. Nascidos dos versos de Paula Abramo, elas são simplesmente extraordinárias na sua vitalidade e coragem para viver e sonhar. Ao contrário de grande parte da narrativa como a conhecemos hoje em dia, importa muito pouco se essas personagens de Fiat Lux "fracassaram" ou "venceram" em suas lutas. Elas existiram [e existem no livro de Paula Abramo] e é isso o que conta. É mais do que muita gente de carne e osso faz.
4. A força e vitalidade dos personagens e das histórias são frutos do texto poético de altíssima qualidade. Várias passagens são lindíssimas e o são sem poses líricas, sem empostações de voz. A voz de Paula Abramo é extremamente original porque se recusa ao tom e dicção "elevados" [um maneirismo ainda muito comum de quem acha que o poeta é o sal da terra] e a gracinhas bobas que tirariam força dos seus personagens. Não estou aqui descartando outros caminhos, mas chamando atenção para um acerto fundamental desse livro. A voz poética não tem medo de ser direta e objeta e olhar para fora e não tem medo de pensar por imagens e levar seus raciocínios longe. Também não tem medo de palavras "difíceis" que aparecem sem qualquer resquício de pedantismo. Não encaro essas escolhas como a decisão de seguir um determinado caminho, mas como um talento feliz de escolher os melhores caminhos para aquilo que o temperamento do poeta já sugere. Outros poetas, com temperamentos diferentes, só podem fazer poesia que valha a pena de outras formas. Paula Abramo parece que encontrou a forma dela já no seu primeiro livro.
5. Fiat Lux também chama atenção pela coragem de jogar com imagens com uma concentração e paciência para as variações ao redor do mesmo tema que me lembraram aqueles raciocínios impressionantes de João Cabral de Melo Neto. O jogo é diferente porque elas estão dispersas por todos os poemas, geralmente em sequências em itálico com espaçamento diferente no início de cada poema, mas não apenas. A imagem é simples e bela: um fósforo Fiat Lux [quem é brasileiro sabe do que estou falando] que se acende e depois se apaga em uma sequência preciosa de instantes que o poeta observa com cuidado. Sobre isso ainda tenho que escrever mais.
6. Fiat Lux também é um livro com particular senso de urgência. Seu ato de fazer reviver os mortos não é produto nem de nostalgia nem de melancolia. Trata-se de trazer à vida, à minha vida como leitor afortunado, essas pessoas extraordinárias que Paula Abramo inventou com a matéria pulsante da sua própria memória e da história. Agradeço a ela por agora "conhecer" Fulvio, Anna Stefânia, Bôrtolo, Rudof e uma personagem especial, que eu não sei se existiu ou existe fora de Fiat Lux e que abre e fecha o livro com chave de ouro: Angelina.
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