7. Angelina é a única personagem sem sobrenome e talvez por isso aquela que se situa mesmo na fronteira mais tênue entre o ficcional e o documental. Teria Angelina também uma existência de carne e osso para além de Fiat Lux? Mais uma vez diferente de seus pares no livro, Angelina aparece em um contexto menos claramente demarcado no tempo. Nada disso faz de Angelina uma presença menos concreta que os outros personagens de Fiat Lux. É com Angelina que acompanhamos o primeiro Fiat Lux do livro, no caso fruto de um comando nesse “pobre modo” imperativo cuja “falta esencial” é sua relativa impessoalidade. Angelina é uma empregada doméstica que recebe um comando simples de sua patroa: riscar o fósforo para acender o fogo para fritar camarões numa cozinha “casi pasillo” (11). Angelina se assemelha à voz poética de Fiat Lux, pois também carrega consigo uma bagagem – uma história, um passado que vai além dela mesma, de nordestina humilde, de exílio forçado, de fome, de seca, “el hambre de su abuela” (11). O papel de Angelina nesse livro de fantasmas do passado é afirmar, frente à permanência no rpesente da fome “ese fantoche de mal gusto” (75) e de “una riqueza enorme y mal distribuida / de crustáceos en el mundo, y de libros y de tiempo / para leerlos” (75), a possibilidade da desobediência “en la frontera minúscula que media / entre la orden y el hecho de cumplirla” (76). Assim, Angelina toma posse do Fiat Lux que a princípio era uma imposição e vai comendo três de cada quatro camarões que frita. Angelina, “breve y es ficticia” (75), é uma presença fortíssima que Paula Abramo cria para abrir e fechar seu livro reafirmando aquilo que foi a grande paixão de Fúlvio Abramo e de outros em sua família: o direito de optar “por el acato o el desacato” (76) e de tomar posse dos frutos do seu próprio trabalho.
8. No título do livro e na reflexão que
ele suscita no livro fica claro algo que enriquece a textura dos versos em vários
outros momentos estratégicos de Fiat Lux:
a formação clássica que Paula Abramo recebeu na UNAM e que ela coloca a serviço do seu livro sem qualquer ranço de Belles Lettres. O Fiat Lux do seu título é um símbolo interessante desse casamento
entre vida, história, erudição e arte. Fiat
Lux é, simultaneamente, o comando bíblico que indica o início da história
do mundo no Gênesis em sua versão latina e uma referência à presença ordinária
na vida de tantos brasileiros da marca estampada na caixinha de fósforos de tantas
cozinhas, fósforos que aparecem em cada um de todos os poemas do livro, fósforos
que passam pelas mãos de duas mulheres inesquecíveis, que Anna
Stefania Lauff fabrica e que Angelina usa.
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