Skip to main content

Escavando notas: de Rulfo a Duke Ellington e de Duke Ellington a Faulkner

-->

A cantora Ivie Anderson é discretamente citada no conto “Paso del Norte” de Juan Rulfo como “la Anderson esa que canta canciones tristes.” Paso del Norte era o antigo nome de Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos. Aqui o trecho:

“—¿Y qué diablos vas a hacer al Norte?
            —Pos a ganar dinero. Ya ve usté, el Carmelo volvió rico, trajo hasta un gramófono y cobra la música a cinco centavos. De a parejo, desde un danzón hasta la Anderson esa que canta canciones tristes; de a todo por igual, y gana su buen dinerito y hasta hacen cola pa oír. Así que usté ve; no hay más que ir y volver. Por eso me voy.”

“La Anderson” canta entre muitas outras coisas uma canção da fronteira com a orquestra de Duke Ellington: o primeiro sucesso de Harry Warren, filhos de imigrantes italianos [nome de batismo Salvatore Antonio Guaragna] nascido no Brooklin famoso pelo seu trabalho com trilhas de Hollywood. A canção de 1922 se chama “Rosa of the Rio Grande”:  



Rosa of the Rio Grande

Music by Harry Warren, lyrics by Edgar Leslie (1922)

Rosa of the Rio Grande
Rosa of the borderland
One word,
then hand in hand
we’ll leave the preacher’s side room
happy little bride and bridegroom

Over the hills of sand,
I've got your love nest planned.
You claim it,
I’ll name it
Rosa of Rio Grande


Ivie Anderson cantava músicas tristes, sim. Mas de uma tristeza irônica, uma ironia fina e levemente escamoteada que também aparece em muitos sambas do mesmo período. Um exemplo é “Cotton” de Rube Bloom [um judeu de Nova Iorque] com uma letra de arrebentar de Ted Koehler, que cria um personagem matreiro que se diz saudoso do Sul, onde ele nasceu “para catar algodão.” É como se um migrante da zona canavieira do nordeste cantasse uma música de saudades da rotina de viver de cortar cana. “Cotton” é a primeira gravação de do saxofonista Ben Webster com a orquestra de Ellington – a fúria criativa do saxofone de Webster é o equivalente Americano da fúria criativa de Pixinguinha na flauta no Brasil:


Cotton
music: Rube Bloom; lyrics: Ted Koehler

Cotton,
Give me a handful of cotton
Take me tonight
To those fields of snowy white
Along that muddy river shore

I'm lonesome for cotton
I'd gladly pick off the cotton
Just to get back
to that old loved cabin shack
Among my kind of folks
once more

I guess the Lord was partial to the Southland
'Cause he looked down and said one morn'
"Somebody's got to pick that cotton!"
And that's the reason I was born

Cotton,
My heart's all wrapped up in cotton
Lord, I was wrong
Take me back where I belong
I’ll never leave the South anymore.

A música me lembra várias passagens de Faulkner, entre elas essa, que descreve Vernon Tull, chefe absoluto de um fim de mundo já afastado do centro produtor de algodão do Alabama mas uma região ainda enfeitiçada pela obsessão com o “Rei Algodão”:

“He was the largest landholder and beat supervisor in one county and Justice of the Peace in the next and election commissioner in both, and hence and fountainhead if not of law at least of advice and suggestion. […] He was a farmer, a usurer, a veterinarian; Judge Benbow of Jefferson once said of him that a milder-mannered man never bled a mule or stuffed a ballot box. He owned most of the good land in the country and held mortgages on most of the rest. He owned the store and the cotton gin and the combined grist mill and blacksmith shop in the village proper and it was considered, to put it mildly, bad luck for a man of the neighborhood to do his trading or gin his cotton or grind his meal or shoe his stock anywhere else.”  

A ironia do narrador que bota prudentemente na voz do juiz que “nunca houve um homem mais gentil que sangrasse uma mula ou estufasse uma urna de votos” e que morar ali e procurar outra loja, outro desencaroçador de algodão ou outro moinho que não fosseo de Vernon Tull no Frenchman’s Bend “traria má sorte.”

Comments

Popular posts from this blog

Diário do Império - Antenado com a minha casa [BH]

Acompanho a vida no Brasil antes de tudo pela internet, um "lugar" estranho em que a [para mim tenebrosa] classe m é dia brasileira reina soberana, quase absoluta, com seus complexos, suas mediocridades e sua agressividade... Um conhecido, daqueles que ao inv és de ter um blogue que a gente visita quando quer, prefere um papel mais ativo, mandando suas "id éias" para os outros por e-mail, me enviou o texto abaixo, que eu vou comentar o mais sucintamente possível: resolvi a partir de amanh ã fazer um esforço e tentar, al ém do blogue, onde expresso minhas "id éias" passivamente, tentar me comunicar diretamente com as pessoas por carta... OS ALUNOS DE UNIVERSIDADES PARTICULARES DERAM UMA RESPOSTA; E A BRIGA CONTINUOU ... 1 - PROVOCAÇÃO INICIAL Estudar na PUC:............... R$ 1.200,00 Estudar no PITÁGORAS:..........R$ 1.000,00 Estudar na NEWTON:.....R$ 900,00 Estudar na FUMEC:............ R$600,00 Estudar na UNI-BH:........... R$ 550,00 Estudar na

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia institucional católica não conseguem [ou não tentam] entender muito o sistema