Skip to main content

Poesia prosaica minha: porque eu não me desespero


Foto minha: hospício abandonado em Diamantina, se não me falha a memória

Este aí embaixo é um primeiro rascunho de uma série de poesia prosaica [não confundir com prosa poética]:

Eu não me desespero


Dedicado a Miriam Carey

Eu não me desespero, não; sabe por quê?
Porque agorinha mesmo eu sei
que num futuro talvez nem tão distante
os exegetas de um outro planeta
recolherão indícios da nossa existência no planeta Terra
e se espantarão com essa multidão à minha volta
que ainda insiste que não está acontecendo nada demais,
que entre ultra-obesos e esfomeados e viciados e diabéticos
e psicóticos de todos os tipos (e se um psicótico é alguém
que perde contato com a realidade,
levando em conta a realidade que nos é oferecida,
quem não os pode compreender?)
e deprimidos e dementes por Parkinson ou por Alzheimer
não somos uma imensa legião de zumbis
carregando nos bolsos um cartão de crédito e uma receita médica
e uma das mais de cem milhões de armas semiautomáticas carregadas que passeiam por aí
e na outra um de mais de cem milhões de telefones que monitoram 24 horas por dia
cada passo e cada peido dos seus usuários
que ficam entre dias de aquecedor e dias de ar-condicionado
procurando desesperadamente uma válvula de escape
na frente de uma tela plana imensa ou minúscula
que passa uma dúzia de anúncios de comida-lixo
que roda e cai em câmara lenta feito os cabelos de uma modelo de anúncio de shampoo
e meia-dúzia de anúncios de antiácido para aguentar feliz a ressaca de corante, humectante,
sódio, gordura e conservante
e depois sete minutos de drama com sacos plásticos fingindo serem seres humanos
barbeados e maquiados
que precisam muito torturar seres humanos barbudos e suados fingindo ser sacos pláticos
para então salvar mais uma vez as criancinhas inocentes da América
e finalmente mais uma dúzia de anúncios de lixo-comida entregues à domicílio
e mais outra dúzia de antiácido ou analgésico ou antibiótico,
porque somos além de tudo alérgicos, sinusíticos, artríticos, infectados do pé à ponta dos
cabelos,
sonhando com o dia em que os aviões não-tripulados
não vão servir apenas para matar gente por controle remoto
mas também para entregar pizza, refrigerante e quem sabe até flores.
E compungidos os exegetas de outro planeta contarão
a partir dos caquinhos que encontrarem enterrados pelo chão seco e duro do nosso planeta
a nossa história absurda e infeliz de contentamento conformista entre explosões de
desespero
e quem sabe então não terão lições edificantes
sobre o que fazer e principalmente o que não fazer
para não sofrer da mesma cegueira e não ter o mesmo triste fim
e assim afinal darão algum sentido a todo este inferno?

Por isso eu não me desespero, não.

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...