Arte minha: "Auto Retrato em Preto e Branco" |
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O estado de repouso estável depende do ajuste do eixo do corpo em perfeita
consonância com a força cega e dura da gravidade. Nesse estado de repouso estável
a força cega e dura da gravidade emudece porque seu vetor coincide
perfeitamente com o eixo do corpo. Muda a gravidade parece desaparecer e o
corpo parece soberano absoluto de seu estar no mundo. O estado de repouso estável
parece só se interromper pela vontade direta e soberana do corpo. Graficamente
imaginamos esse ajuste de eixos como uma linha reta horizontal ou vertical ou como
um arranjo estritamente simétrico de linhas. Musicalmente imaginamos esse
ajuste de eixos como intervalos, acordes e harmonias que chamamos de consonantes.
Transferimos assim para os âmbitos visual e aural esse estado de repouso
estável, essa ilusão de uma posição cômoda do corpo na sua relação com o mundo
em que supõe-se que o peso pertence ao corpo ao invés de ser-lhe atribuído por
essa força cega e dura que emana do planeta em que estamos.
Nos momentos de desajuste entre o eixo do corpo e a força cega e dura da
gravidade surge a dissonância. Na dissonância a força cega e dura da gravidade
perde sua camuflagem porque seu inflexível vetor e o maleável eixo do corpo já
não coincidem mais. É nesse estado que sofremos o doloroso reconhecimento do
outro que existe fora de nós, especificamente dessa força que vem de além dos
limites do corpo e que exerce sobre ele uma pressão implacável que nos persegue
cegamente desde o primeiro até o ultimo dia da vida e mesmo além. Imaginamos esse
desajuste de eixos graficamente como uma linha curva ou em diagonal ou por um
arranjo assimétrico qualquer. Musicalmente o imaginamos como intervalos,
acordes e harmonias dissonantes. Transferimos assim para o âmbito visual e
aural esse estado tensionado, instável e incômodo do corpo na sua relação com o
mundo em que percebe-se a ação implacável dessa força cega e dura que emana do
planeta em que estamos.
Vista como mera transição, a dissonância não incomoda tanto. Vista
assim, como passagem, a dissonância aparece impregnada de uma combinação da melancólica
memoria de um repouso anterior e da esperança na volta à ilusão reconfortante
do repouso que é sentido como soberania mas que como solidão. A observação da alegre
luta obstinada de uma criança que começa a caminhar é suficiente para que se
perceba que a dissonância não é uma mera passagem. Nossos corpos vivem
flutuando incessantemente de um arranjo para o outro, da consonância para a
dissonância e vice-versa. Só nos momentos de prolongado repouso absoluto, a
consonância existe livre dos fantasmas da precariedade dissonante que a
antecederam e hão de suceder-lhe a qualquer momento.
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Tata