Skip to main content

Segunda versão

6 – Uma Gota de Fenomenologia ou Auto das Flores


escovar a história a contrapelo

Estou neste momento tomando um café na mesa de um restaurante assentado num pedaço de terra no município de Moctezuma no norte do estado de Minas Gerais no sudeste do Brasil. Esse restaurante está aqui, creio, faz mais ou menos 20 anos. Foi construído com a permissão do dono desse pedaço de terra, que o herdou de seu pai, que o comprou de um ex-proprietário de uma fazenda que incluía outros terrenos envolta desse. Esse antigo dono, por sua vez, herdou a antiga fazenda de seu pai, que a comprou de um outro fazendeiro que por sua vez herdou a terra de seu pai, que a ocupou. Esse primeiro sujeito, que chegou aqui há seis gerações atrás, foi o primeiro proprietário desse pedaço de terra. Antes ela não pertencia a ninguém. Isso não quer dizer que ninguém vivia aqui. E aqueles que viviam aqui antes da chegada desse primeiro proprietário documentado foi destituído de seu direito de usar esse pedaço de terra para caça, cultivo ou moradia.
Essa destituição, a partir da qual inaugurou-se a longa cadeia de proprietários desse pedaço de terra onde se construiu esse restaurante onde tomo meu café, só foi possível pelo uso de coerção com base em violência ou pelo menos na possibilidade do uso de violência. Se preferem uma imagem mais viva: a destituição dessa terra fez-se com um pedaço de papel registrado em cartório numa mão e uma carabina na outra. A destituição aconteceu e está registrada em cada título de propriedade de cada pedaço de terra daqui até Quebec, ou daqui até a Patagônia. É impossível fazer qualquer coisa, por exemplo tomar um café, em qualquer lugar nesse continente que não seja resultado daquele roubo, daquela destituição, daquela violência.
Quando compramos e vendemos pedaços de terra com ou sem construções em cima, em cidades ou no campo, estamos nos inserindo numa longa linha que começa com aquela destituição. Quando pagamos aluguel, estacionamento, um quarto de hotel, um assento no cinema, uma mesa num bar, uma cama no hospital ou uma consulta no médico, também estamos sendo inseridos nessa mesma longa linha. Há, entretanto, uma diferença imensa, fundamental, entre o lado pelo qual somos inseridos nela. Melhor imaginar essa longa linha como uma faca que estamos sempre segurando, ou pelo cabo ou pela lâmina.

A maioria de nós viverá feliz sem se dar conta de nada disso, por conveniência própria ou alheia. Entre a minoria que der conta desse fatos, alguns se ofenderão em ver algo tão feio e sujo como uma condição inescapável e dirão que colocar as coisas dessa maneira é distorcer a realidade. Outros aceitarão o fato francamente e dirão cinicamente que, já que não há saída, o melhor é garantir que estaremos sempre do lado que segura o cabo, mantendo intacto nossos dedos e anéis. Apenas uma minoria da minoria, um pequeno grupo seleto, será tocada a fundo por esses fatos terríveis. Esses serão os protagonistas do Auto das Flores.

Comments

Protagonistas, ou co-agonistas, que lamentarão junto com o afável senhor que não se pode mais encontrar -- perdido nos tempos da sua perda e da perda de sua vida e memória -- nos tornaremos. Mas onde isso pode nos levar? Atos de auxílio aos sem terra? Atos de auxílio ao que, vazios de coração, tem menos do que os tem teto e que nos circundam em quantidade máxima diariamente?
Parece essa ser uma boa resposta à crise da falta de coração (falta de recheio mental?). Algum outro protagonista se digna a cantar comigo? Ou a lamentar?
A sequência desse texto explica o "auto das flores" e já foi postado aqui há pouco tempo. Acho que o texto funciona sozinho [meu desejo era escrever contos que se ligassem uns aos outros e pudessem ser lidos de forma diferente se fossem lidos em conjunto]. Gostaria muito se você desse uma olhada naquele também.

Popular posts from this blog

Diário do Império - Antenado com a minha casa [BH]

Acompanho a vida no Brasil antes de tudo pela internet, um "lugar" estranho em que a [para mim tenebrosa] classe m é dia brasileira reina soberana, quase absoluta, com seus complexos, suas mediocridades e sua agressividade... Um conhecido, daqueles que ao inv és de ter um blogue que a gente visita quando quer, prefere um papel mais ativo, mandando suas "id éias" para os outros por e-mail, me enviou o texto abaixo, que eu vou comentar o mais sucintamente possível: resolvi a partir de amanh ã fazer um esforço e tentar, al ém do blogue, onde expresso minhas "id éias" passivamente, tentar me comunicar diretamente com as pessoas por carta... OS ALUNOS DE UNIVERSIDADES PARTICULARES DERAM UMA RESPOSTA; E A BRIGA CONTINUOU ... 1 - PROVOCAÇÃO INICIAL Estudar na PUC:............... R$ 1.200,00 Estudar no PITÁGORAS:..........R$ 1.000,00 Estudar na NEWTON:.....R$ 900,00 Estudar na FUMEC:............ R$600,00 Estudar na UNI-BH:........... R$ 550,00 Estudar na

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia institucional católica não conseguem [ou não tentam] entender muito o sistema