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Eduardo Viotti Leão - Capítulo 2

Severiano Leão, o pai de Eduardo, desaparecera deixando a família em situação precária quando o filho tinha doze anos e reaparecera brevemente naquele mesmo escritório quinze anos mais tarde. Eduardo já era então um homem feito de 27 anos, casado com dois filhos, estabelecido, preparado, no lugar certo e na hora certa para lucrar espetacularmente com a avalanche de dinheiro do governo e dos estrangeiros que inundaria o estado (e afogaria muita gente também) nos próximos anos. Severiano pareceu-lhe um velho feio, com a pele manchada, magro, desgastado, quase inofensivo: uma sombra da autoridade onipresente que dominara a sua infância e da ausência sufocante que marcou a sua adolescência. Aquele velhote magrelo parecia atolar-se na cadeira de mogno, escorregando devagar no assento de couro até o rosto quase sumir por baixo da mesa. Nervoso, mas completamente concentrado, Severiano falava num tom monocórdio, mastigado, pastoso, as órbitas dos olhos correndo a sala de um lado para o outro, mecânicas, um par de autômatos; do outro lado da mesa o filho, as mãos impecáveis pousadas uma sobre a outra, escutava silencioso e impassível o monólogo do pai:
- Cheguei a Paris escorraçado daqui meu filho era meia-dúzia de famílias donas de fazendas cada vez mais imensas e cidades cada vez mais sonolentas espalhadas pelo estado afora e em 20 anos vivendo na capital nova todas estavam já casadas entre si e donas do governo e da política eles mal toleravam os imigrantes turcos e italianos com suas lojas de tecidos e padarias quanto mais com um banco e eu tive que ir embora com os bolsos vazios e fui determinado a reconstruir a minha vida do zero trabalhei imagine eu como varredor servente pintor de paredes lava-pratos assistente de cozinha faxineiro vigia zelador de prédio vivi nos piores tugúrios de Paris em quartos úmidos e escuros onde mal cabiam uma cama estreita sem colchão nem roupa de cama e um armário com a porta quebrada sem cabide nem espelho tudo coberto de mofo e pó imagine eu sofria demais com a chuva e o frio horríveis no inverno e a fome bateu algumas vezes à minha porta (Eduardo escutava impassível enquanto Severiano tentava contrapor com as suas próprias fantasias absurdas as fantasias também absurdas que a esposa abandonada repetira semanalmente há quinze anos para os dois filhos. Da boca da mãe, Eduardo conhecia aquele homem como o monstro – esse o termo que ela sempre usava. Aquele velhote magrelo propunha-lhe algo ainda mais absurdo. Desenhava apressado na frente do filho que praticamente não conhecia um retrato tosco de si mesmo como um pobre homem injustiçado, transformando, delirante, a sua covardia no sacrifício supremo de um abnegado para demandar, melodramático, reconhecimento de seu filho pelo abandono da própria família, correndo, atropelando as palavras para poder finalmente clamar, afoito e atabalhoado, pela glória improvável de uma ressurreição triunfante concedida pelo filho rico.) pastando ainda o pão que o diabo amassou quase igual em Paris ainda quase 10 anos depois que eu cheguei chegaram os alemães entraram em triunfo na cidade ocupada de 4 e eu com muito custo já tinha conseguido alguma coisa já um emprego fixo e um lugar um pouco mais decente para morar uma cama com colchão e um espelho no armário e espaço para uma penteadeira simples e uma pia no quarto e logo começaram as buscas e as prisões e depois as deportações sempre organizados metódicos detalhistas ao extremo os alemães e as oportunidades muitas começaram a aparecer para qualquer um Francês ou não-Francês agora tanto fazia agora éramos iguais não sendo judeu cigano comunista preto homossexual bastava a vontade e o senso de oportunidade aguçado que eu sempre tive desde que eu cheguei a Belo Horizonte com minhas economias de anos de caixeiro viajante desde menino e então em Paris eu consegui um emprego mesmo uma oportunidade excelente que era mesmo um sonho de muita gente ali naquela hora.
O serviço era simples: logo depois que um apartamento qualquer era evacuado alguém da Controladoria de Bens Requisitados aparecia e pregava um selo na porta para que ninguém entrasse ali e aí no máximo duas semanas depois meu serviço começava nossa equipe chegava lá e fazia a limpeza completa que acontecia logo antes da chegada do pessoal da fumigação e eu jogava fora no lixo tudo o que tivesse quebrado rasgado apodrecido ou mofado e juntava tudo o que tinha ficado para trás – móvel panela luminária tapete cortina coberta lençol almofada vaso roupa toalha pote copo papel fotografia carta às vezes até um filhote um cachorro um gato um passarinho a gente achava ou até – absolutamente tudo encontrado até o último potinho de geléia no fundo da última prateleira da despensa tinha que ser recolhido embrulhado encaixotado selado etiquetado e levado a um dos cinqüenta depósitos espalhados pela cidade inteira onde cada item era então retirado desembalado limpo classificado registrado re-etiquetado e guardado em prateleiras imensas e tudo tinha que ser feito em perfeita limpeza e ordem alfabética e ai de quem depois mexesse e tirasse dali um copo quebrado que fosse sem permissão da Controladoria e foram 4 anos maravilhosos para mim com trabalho ininterrupto garantido 8 até 10 horas por dia 7 dias por semana dinheiro no bolso e a vida começa de novo e a vida melhorava rápido bastando o sujeito ser disposto e ter em quantidade generosa o que os alemães acham que é a maior das qualidades humanas que é a absoluta falta de curiosidade com o que não lhe dizia respeito diretamente e isso eu tinha mais a concentração intensa de quem almeja acima de tudo a longevidade e uma vida se possível um pouco mais tranqüila e confortável e eu sou assim admito não tenho vergonha de dizer que eu adoro viver muito se eu fosse eterno para mim o mundo seria perfeito e eu não vivo no passado nunca sou de viver amargurado com lembranças o passado para mim não serve para nada se não servir para nada e é só por isso que quando as coisas melhoraram e a vida começou de novo eu conheci uma moça e me casei de novo em Paris e é por isso que eu acabei constituindo lá uma outra família para mim que eu de novo não pude trazer comigo tragicamente pela segunda vez porque eu mal consegui sair de Paris muito às pressas escondido em 1944 ironicamente fugindo de novo só com uma mão na frente e outra atrás: os franceses todos inclusive os que trabalhavam comigo todos na rua procurando feito chacais loucos para livrar a própria cara procurando qualquer estrangeiro como eu ou qualquer prostituta de meia pataca para jogar a culpa de tudo que aconteceu e chutar e raspar a cabeça e rasgar as roupas e pintar a cara e contar para o resto do mundo essa história da carochinha que eles inventaram para explicar como um exército inteiro equipado e pronto para combate vira pó em seis semanas e uma semana depois 40 milhões de franceses são completamente dominados por míseros 7.500 alemães sem a ajuda de ninguém além de uma meia-dúzia de prostitutas vagabundas porque agora parece que os 40 milhões de franceses estavam todos enfurnados em buracos na resistência escondidos nos porões haja porão e sótão para essa tanta gente toda mas Eduardo você talvez não me acredite mas eu sou um homem de família eu amo a minha família e eu só voltei para incomodar vocês porque os franceses e só saí do Brasil porque eu não podia mais ficar depois da sacanagem que fizeram comigo – aqui eu vivi o tempo todo espremido de um lado gente graúda tradicional inclusive na família da sua mãe um bando de carcamanos mas ninguém se lembra chegam de navio com uma mão na frente e outra atrás e essa gente queria se ver livre de mim e do outro lado toda essa gente miúda que tinha inveja do meu sucesso – a família da sua mãe sempre foi assim – escondendo tudo debaixo da mesa dentro dos armários com medo do que os outros iam pensar da inveja dos pedidos de empréstimo dos falsos amigos mas o triste é que você não me conhece meu filho e isso é muito triste mas é verdade foi um sacrifício que eu fiz duas vezes nessa vida eu não quero me gabar mas eu não sou o que dizem de mim nunca fui assim para mim o que importa é estar aqui vivo e ser feliz e o resto que se –
Eduardo sabia que o pai abandonara de novo esposa e dois filhos antes da tomada de Paris pelos aliados, levando o que pudera carregar sem chamar a atenção. Longe da cidade onde poderia ser reconhecido como colaborador, Severiano esperou escondido pela retração dos alemães e quando se viu do lado dos aliados, saiu o mais rápido que pôde da Europa. Quando soube do sucesso inacreditável do seu filho brasileiro, decidiu voltar. Eduardo não se deu ao trabalho de contestar as fantasias nem o desejo delirante de seu pai “reassumir os negócios da família”: ofereceu-lhe uma modesta mesada com a condição que ele se mantivesse longe dali, fora do estado, para sempre.

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