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Showing posts from April, 2008

O cavalo morto de Cecília Meireles

Cecília Meireles é um pouco como Guimarães Rosa, uma grande artista brasileira que precisa ser resgatada de um equívoco crítico que vai se repetindo em um eco meio irrefletido e acaba tornando algo aparente e claro em um mistério que ninguém vê. O poema abaixo é exemplo de que Cecília não é essa passadista meio morna que os manuais escolares de literatura querem projetar. O cavalo desse contundente poema faz companhia na minha imaginação ao cavalo morto de um romance de Faulkner [As I Lay Dying], aos cavalos mortos do filme de Buñuel & Dalí [Le chien andalou] e ao terrível genocídio eqüino de Grande Sertão: Veredas . O cavalo morto Vi a névoa da madrugada deslizar seus gestos de prata, mover densidades de opala naquele pórtico de sono. Na fronteira havia um cavalo morto. Grãos de cristal rolavam pelo seu flanco nítido; e algum vento torcia-lhes as crinas, pequeno, leve arabesco, triste adorno, - e movia a cauda ao cavalo morto. As estrelas ainda viviam e ainda não eram nascidas ah...

No meio da tempestade

Às vezes as coisas acontecem assim e nem toda a calma nem todo o amor nem toda a paciência do mundo são suficientes para navegar aqui nesse mar revolto. Então eu penso em como era antes: como eu ficava quieto, parado, olhando para uma parede qualquer esperando a tempestade passar, paralisado, incapaz de um gesto de reação, com medo da raiva que era a minha única língua, a única que eu conhecia. A única coisa que eu queria naqueles vários momentos em que a tempestade entrava pela casa adentro [foram tantas vezes] mesmo com todas as portas e janelas hermeticamente fechadas era morrer. Mas eu não quero mais morrer. Eu já morri demais. Eu já cansei de morrer. Eu ainda tenho medo tanto quanto eu tinha medo antes, talvez até pior agora, cada vez pior porque cada vez há mais a se perder do que antes. Mas agora eu quero: o livro do Matisse, um i-pod com todas as músicas do Portishead e do Radiohead, uma pasta de couro para o computador, muitas outras coisas eu quero e não quero nada para mim. ...

Fratura Exposta

Calavera Oaxaqueña [1910] José Guadalupe Posada [1852-1913] Faustus: Where are you damn’d? Mephistophilis: In Hell. Faustus: How comes it then that thou art out of hell? Mephistophilis: Why this is hell, nor am I out of it. Pobre esqueleto enterrado completamente dentro em mim, sonha em ser livre um dia. Inocente osso não sabe que a morte não leva a nada: o corpo remando para o chão, mera mudança de cela.

Rigoroso...

Acho que muito frequentemente quem diz “rigor” está dando um outro nome para “austero” e é uma escolha infeliz [e nada rigorosa]. As 600 páginas de Grande Sertão: Veredas são produto de um processo criativo rigoroso, mas nada austero. A poesia pode ser [para usar rótulos cansados mas ainda muito em voga] "rigorosa" ou "caudalosa", “sucinta” ou “exuberante” – isso não implica de forma alguma em boa ou má poesia. As pessoas têm mania de substituir as sutilezas de um julgamento estético por uma saída mais fácil, que possibilita aparentar uma opinião própria com o menor esforço possível e passar uma sentença sumária com relação às caracteristicas mais aparentes do estilo de alguém, sem perceber que não é tanto nas escolhas, mas no que fazem com essas escolhas, que os poetas [ou prosadores] são melhores ou piores. Não dá para ficar, em pleno século XXI, discutindo estética à moda dos manifestos vanguardistas que, por exemplo, condenavam à morte do limbo da história das f...

Para o pior aniversário de toda a minha vida

Não desista agora, amigo: Pinte um sorriso Tape os buracos do rosto Olhos fixos sempre à frente O coração batendo, fixo, preso dentro das costelas Alguma coisa ainda há de faltar Sempre Mas por mais que eu reconheça Por mais que eu saiba que é assim mesmo Porque é que não pára de doer? Aí fora e aqui dentro Porque é que não pára de doer? Você abaixa e pega um pacote e cai o outro no chão rasga o saco cai o copo se espatifa Tonto os joelhos doem as costas racha o dente rói a pele cada nova doença é sempre crônica nenhuma das minhas cruzes vai embora Quando é que você ficou assim tão velho? Como é que você perdeu sua casa E não ganhou nada em troca? Os grandes nomes famosos veneráveis mitos Chefes supremos de todos os meus destinos Cheios de medalgas e títulos e becas e distintivos Nessa terra fria estranha podre até a raiz mais profunda São um bando de egos ridículos Incapazes de não se levarem à sério exibindo como perus vaidosos seus rabinhos listrados de cinza em volta do círculo de ...

Diario de um imigrante como se enquadrar "sem traumas"

Como se enquadrar: Primeiro, pratique o aspecto passivo, que é o mais fácil e o mais importante, do enquadramento social de um estrangeiro ao seu novo país. Observe sempre os nativos e expresse um determinado sentimento [indignação, medo, alegria, tristeza, etc.] apenas quando eles assim se expressarem e da maneira como eles se expressam. Um pequeno atraso entre o início do seu sorriso e o dos nativos à sua volta nunca será percebido por eles, mas um sorriso diferente do deles ou um sorriso dado no momento errado denuncia seu estatuto de forasteiro imediatamente. Não se preocupe com o conteúdo de cada gesto que vê; isso não tem a menor importância. Não queira saber porque sorrir naquele exato momento, nem o que aquele sorriso expressa além de demonstrar concretamente a normalidade dentro daquele grupo. É a forma, a forma como eles sorriem, que nos importa aqui. Não mostre os dentes além da conta, não emita sons diferentes, não feche os olhos se eles não fecham os deles, mexa a cabeça o...

O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente

O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente. O medo amargava o cabo da língua em Barbacena os loucos desencarnavam dentro de barris cheios de ácido detalhando o podre do são e os ossos abasteciam os mostruários das escolas de medicina onde se aprendia a autopsiar fugas e atropelamentos impossíveis. O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente. Gostava dele quando eu fechava os olhos, na língua sem palavras que trago comigo, e era tudo um imenso domingo universal. O calor em que o cão pendura a língua segurava meu coração pelo rabo na linha de resguardo, mas não parava o tempo. O poema desliza em si mesmo como um cubo de gelo numa chapa quente. Atrás de sorte e morte as ruas fermentavam restos de urina e cerveja quente mas o patrimônio específico dos corações inferiores como o meu é o ressentimento, canoão no seco, trem de doido, pronto para me levar para Barbacena, oco sem beiras, parar de ser. O poema desliza em si mesmo como um cubo de gel...

Eleições e ilusões primárias

Nessas manifestações de entusiasmo pela campanha nas primárias americanas, acompanhada por uma certa indiferença pelas eleições municipais no Brasil, a gente vai também revelando a mesma inocência [ou será mesmo hipocrisia?] com que geralmente analisamos a vida política aqui ou lá. Vou me explicar melhor: o Brasil elegeu por duas vezes Lula com votações consagradoras [depositando nessas vitórias grandes esperanças de mudanças significativas] e, ao mesmo tempo, elegeu um congresso com clara maioria conservadora e fisiológica nas duas casas – basicamente o mesmo congresso com o qual FHC teve que governar. E depois ficamos todos decepcionados, reclamando por aí dos "conchavos" e "concessões" e "traições" ao projeto que o presidente da república representaria. Mas como governar com esse congresso sem concessões substanciais? Será que as tentativas de “cooptação” [leia-se: compra] de grupos descaradamente fisiológicos são fruto de mera vontade de perversão mora...

Porque só ler literatura brasileira na escola?

Acho um absurdo esse monopólio absoluto da literatura brasileira nas escolas e no vestibular. Parece coisa de um tempo em que nosso complexo de inferioridade queria evitar de qualquer forma a comparação com os grandes mestres da Europa para que as nossas supostas "fragilidades" não ficassem mais claras. A literatura brasileira não precisa e não deve temer a comparação com nenhuma outra. Não seria maravilhoso ler juntos Eça e Machado, Cruz e Souza e Camilo Pessanha, Drummond e Fernando Pessoa? Ler juntos Borges e Guimarães Rosa, Rulfo e Graciliano Ramos, Clarice e Cortázar, que tal? Uma das coisas mais difíceis para mim é explicar a um falante de língua inglesa que na nossa universidade nós segregamos a literatura em português em dois departamentos completamente diferentes. Para eles dividir Dickens e Edgar Allan Poe em dois departamentos seria algo incompreensível. E nós ainda acusamos [com uma certa razão] os anglo-saxões de tentar compartimentar tudo em guetos. Reservas de ...

A Pessoa Bruta - Mautner

Gosto do otimismo do Mautner nessa sua grande canção que vale a pena conhecer [fica a recomendação], mas infelizmente conheço muita gente "pedra bruta" dura demais, que rola pela vida inteira e... nada. A Pessoa Bruta [Jorge Mautner] A pessoa bruta não liga pra nuance das coisas Por onde ela passa ela arrebenta Pois ela é uma pedra em movimento Que se move com o tempo e que se movimenta E a pedra que rola pela vida vai rolando E ao rolar aos pouquinhos ela se fragmenta Ela rola e se esfola e vai se erodindo E vão surgindo grãos de areia a seus pés Podem chamar isso de experiência de vida De erosões, iluminações e de axés Mas eis que de repente quem era a pedra bruta Virou a própria flor do amor em forma absoluta Por isso que eu digo que essa vida vai nos levando E ao levar ela nos leva nos eleva e vai nos transformando Ê ê ê ê ê ê Ô ô ô ô ô ô Eu aprendi a ler no abc do amor Ê ê ê ê ê ê Ô ô ô ô ô ô Pra onde for você é pra lá que eu vou

Poesia Mexicana - José Emilio Pacheco 1

Nós costumamos nos lamentar da ignorância dos estrangeiros sobre a nossa literatura, sem admitir a nossa ignorância sobre a literatura de certos estrangeiros, aqueles que estão exatamente na nossa mesma situação. Quem é o maior poeta vivo do México? José Emilio Pacheco. E devo dizer, um poeta do mesmo tamanho de grandes poetas mexicanos ou não já mortos. Vou fazer uma série com ele, comecando com dois poemas sobre poesia: Vidas de los poetas En la poesía no hay final feliz. Los poetas acaban viviendo su locura. Y son descuartizados como reses (sucedió con Darío). O bien los apedrean y terminan arrojándose al mar o con cristales de cianuro en la boca. O muertos de alcoholismo, drogadicción, miseria. O lo que es peor: poetas oficiales, amargos pobladores de un sarcófago llamado Obras completas. Irás y no volverás, 1973 Manifiesto Todos somos “poetas de transición”: La poesía jamás se queda inmóvil. Irás y no volverás, 1973

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 7 [final]

A passagem dos cinqüenta para os sessenta anos é uma segunda adolescência. Tudo muda de novo, no corpo e fora dele, rápido demais. Em contraste com o espanto causado pelo corpo em seu implacável movimento interno (músculos, órgãos, ossos, pele e pelos), as muitas mudanças do lado de fora não tinham qualquer sabor, doce ou amargo, de novidade. A vida: o trabalho, as pessoas, boas ou más, continuavam mudando iguais, tudo cada vez mais repetitivo. Até o mesmo sexo transformara-se numa rotina aborrecida. Quantas vezes Eduardo não quis parar no meio do caminho, virar-se para o lado e simplesmente dormir? Pensei melhor, meu bem, e, sinceramente, não vale a pena. Ele e a esposa dormiam em quartos separados há muito tempo, mas com Laura era diferente. No apartamentinho classe média que Laura achava um luxo e ele uma bela porcaria, o que era em tese diversão agora lhe parecia um fardo. Mas, por motivos que Eduardo não saberia explicar, ele continuava a visitá-la metodicamente, duas vezes por se...