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O cavalo morto de Cecília Meireles

Cecília Meireles é um pouco como Guimarães Rosa, uma grande artista brasileira que precisa ser resgatada de um equívoco crítico que vai se repetindo em um eco meio irrefletido e acaba tornando algo aparente e claro em um mistério que ninguém vê. O poema abaixo é exemplo de que Cecília não é essa passadista meio morna que os manuais escolares de literatura querem projetar. O cavalo desse contundente poema faz companhia na minha imaginação ao cavalo morto de um romance de Faulkner [As I Lay Dying], aos cavalos mortos do filme de Buñuel & Dalí [Le chien andalou] e ao terrível genocídio eqüino de Grande Sertão: Veredas.

O cavalo morto
Vi a névoa da madrugada
deslizar seus gestos de prata,
mover densidades de opala
naquele pórtico de sono.

Na fronteira havia um cavalo morto.

Grãos de cristal rolavam pelo
seu flanco nítido; e algum vento
torcia-lhes as crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,

- e movia a cauda ao cavalo morto.

As estrelas ainda viviam
e ainda não eram nascidas
ah ! as flores daquele dia ...
- mas era um canteiro o seu corpo:

um jardim de lírios, o cavalo morto.

Muitos viajantes contemplaram
a fluida música, a orvalhada
das grandes moscas de esmeralda
chegando em rumoroso jorro.

Adernava triste, o cavalo morto.

E viam-se uns cavalos vivos,
altos como esbeltos navios,
galopando nos ares finos,
com felizes perfis de sonho.

Branco e verde via-se o cavalo morto,

no campo enorme e sem recurso,
- e devagar girava o mundo
entre as suas pestanas, turvo
como em luas de espelho roxo.

Dava sol nos dentes do cavalo morto.

Mas todos tinham muita pressa,
e não sentiram como a terra
procurava, de légua em légua,
o ágil, o imenso, o etéreo sopro
que faltava àquele arcabouço.

Tão pesado, o peito do cavalo morto !

Comments

Anonymous said…
Interessante você falar sobre a Cecília Meireles. Essa escritora é sempre associada nas histórias da literatura ao grupo dos "espiritualistas" - intelectuais vinculados ao catolicismo e, por essa razão, sempre taxados de passadistas, e só. O "modernismo" de Cecília, se o há na interpretação das histórias literárias, é sempre associado a uma "terceira fase" do movimento, menos combativa que a primeira - que é tida como o grande modelo do modernismo no Brasil. O poema é realmente muito interessante e demonstra como são redutoras todas as tentativas de taxar um escritor dentro de um modelo fechado; é realmente necessária uma revisão ou uma ampla discussão acerca desses modelos historiográficos, quase sempre falhos e imprecisos.
Pois é, Quel, Cecília Meireles e Guimarães Rosa são bem diferentes, mas ambos ficaram com uma fama [injusta] de estetas numa torre de marfim, e ganharam essa fama, ironicamente, de pessoas que achavam eles “o máximo” por serem estetas numa torre de marfim! Dizem que Marx dizia que tinha mais medo dos seus admiradores dos que de seus adversários…
Anonymous said…
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