Nós vamos afundar
ainda.
Jorge de Lima
Não é: "o que é arte?", mas, "quando é arte?"
A partir de Nelson Goodman
Antes dos remorsos
desse avião despedaçado
que nunca passeou com os filhos,
antes dos poetas míopes,
do homem de chapéu Panamá,
e dos colecionadores de nuvens,
antes que o sino dobre
e o mosquito amigo do rei
penetre a pele velada
pelo mosquiteiro furado,
nós vamos afundar
dançando devagar até o fundo da
garrafa e lá vamos nos reencontrar
transformadas em bestas
de corpo fosforescente, criaturas
vivendo sem luz, no fundo
mais fundo, submersos
no lodo, sem olhos
para abrir e ver,
só um par de antenas
cravadas no couro velho e duro.
E, no momento mais agudo,
esses monstros lá de baixo
vão nos mastigar devagar
e, como nossas irmãs hienas,
vão nos enterrar na areia
e voltar para comer
o resto mais tarde.
Mas um corpo morto é um copo
deitado, não segura mais nada;
aberto para o mundo,
não se fecha nunca mais.
Ah, nós vamos afundar
devagar, e vai ser bom demais.
Porque lá no fundo a felicidade
vai estar nos esperando
com a boca aberta,
macia, sem dentes, pronta para
nos reconhecer
e nos engolir sem mastigar.
Ah, vai ser bom demais.
Nós vamos afundar
agora, juntas.
Paulo Moreira
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