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8 e ½ de Fellini

Já li um crítico que dizia que com 8 e ½ o modernismo finalmente chegava ao cinema em 1963 – e eu fiquei me perguntando, “será que esse cara nunca viu 'Cão Andaluz' do Buñuel?” Bom, modernismos e pós-modernismos a parte, esse filme sobre um filme sobre um filme é uma jogada de mestre de um diretor consagrado em plena crise dos 40, sem saber que caminho seguir. Mas nesses nossos tempos de moralismo puritano, o que mais me chama em Fellini é a capacidade de ser profundamente crítico [inclusive consigo mesmo] sem perder absolutamente o afeto pelas coisas. Nem o senso crítico é raivoso e amargo, nem a memória nostálgica é simplesmente apaziguadora. Um exemplo dessa proeza que Fellini repete tantas vezes em seus filmes, no caso de 8 e ½, é a paródia impiedosa que ele faz das fantasias masculinas, revelando sem o menor pudor, com a maior cara de pau possível, o desejo do protagonista de ver, não apenas a amante perua e a esposa intelectual, mas todas as mulheres que amou ou desejou – inclusive mãe, avó e babás – num harém absurdo, completo com um andar de cima para aquelas condenadas ao esquecimento.



Comments

Diego Viana said…
Eis um filme grandioso! Entro pra subscrever seu trecho sobre o espírito crítico de Fellini, que não perde o carinho pelas coisas. Talvez esse seja o segredo da vida. Há que perguntar-se a Sêneca...
Grande Diego! Concordamos em mais uma coisa então. Eu que vivo na Nova Inglaterra, epicentro da forma puritana de encarar o mundo, preciso muito de Fellini para arejar as idéias. Assisti pouco depois a Sinedoque Nova Iorque e o contraste foi gritante. Fellini encolheu esse filme até ele quase sumir da tela.
Clássico dos clássicos, Paulo!

É o primeiro filme Fellini do Fellini, porque até 1962, ele flertou com o neorealismo (I Viteloni e La Strada, para ficar nos melhores) e com o cinema italiano dos anos 60 e 70 (com La Dolce Vita).

A partir do 8 e 1/2, Fellini passa a ter uma cara toda própria.

Um filmaço, e sua análise ficou muito boa.
Abração
Obrigado, João. É mesmo fascinante pensar que um diretor em crise aos 40 anos, depois de uma série de sucessos, finalmente encontra uma outra voz, realmente original.

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