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Diego Viana, de novo na mosca

Vemos aqui a pobre mulher vendaval dividida entre o terno bem cortado da PM defensora da lei e da ordem do Brasil varonil e o figurino preto-básico do blac-block defensor dos frascos e comprimidos.

Diego Viana escreveu no seu blogue, como de costume, uma das melhores análises sobre tudo o que tem acontecido no Brasil desde o ano passado. Transcrevo aqui apenas o começo de uma jornada a um buraco que fica bem mais embaixo do que o bate-boca que eu acompanho no Facebook:

"Já a questão da violência, que tratei segundo uma determinada perspectiva ainda em julho, explodiu mais recentemente numa miríade de versões que indicam menos a necessidade de desenvolvê-la e bem mais a de deslocá-la. Infelizmente, e isso é mesmo muito ruim, como na má dramaturgia, consolidaram-se nos últimos meses dois personagens antagônicos. Com eles, é possível, é até quase inevitável, formar uma relação de identificação ou repulsa praticamente imediata. Dessa relação imediata, fazemos uma barreira de julgamentos que nos desobriga de qualquer tentativa de esclarecimento. E esse é o pior estado em que podemos estar.
É claro que estou falando dos personagens Polícia Militar e Black Bloc. Talvez pudéssemos acrescentar aí um terceiro personagem, que seria “o manifestante bem intencionado”, mas para ficar na analogia da dramaturgia de quinta, esse aí faz mais a função da escada que conduz ao conflito maior entre o mocinho e o vilão – e a sua tarefa, individualmente, é escolher qual dos personagens vai ser mocinho e qual vai ser vilão: é uma trama interativa. Uma forma como o desenvolvimento dessa dramaturgia se expressa pode ser a seguinte: “manifestações são belas e justas, principalmente belas, mas não concordo quando descamba para a depredação”. Outra forma: “que coincidência, não tem polícia, não tem violência”. Na primeira, o vilão é o “vândalo que toma conta das manifestações”; na segunda, é a PM."

O texto vai muito além dessa observação certeira. Mas eu paro por aqui dizendo que não podia concordar mais com Diego. E aproveito para dizer que cada vez me convenço mais que o Brasil precisa de literatura. Não porque a literatura nos faz mais finos e elegantes e seres humanos melhores [mesmo porque qualquer pessoa que conheça um departamento de literatura por dentro sabe muito bem que ler não faz necessariamente bem a ninguém]. O Brasil precisa de mais literatura porque essa tramazinha rala de novelão das oito não vai dar nem para o começo. Eu me irrito com a tendência dos americanos de formatar tudo em épico edificante do triunfo da vontade humana individual, mas tratar da vida no Brasil em 2014 com esse rame-rame de melodrama requentado que embala o Brasil varonil seis dias por semana [Faustão e Fantástico arrematando o serviço no domingo] é querer enfrentar Godzilla com um estilingue malhado.

Comments

Diego said…
Valeu! E realmente, precisamos de uma literatura e uma dramaturgia um pouco mais temperadas…

Aliás, mesmo as novelas já foram mais inteligentes… Está passando a reprise de uma de 1980 em que Tonia Carrero sai pra dançar vestida de palhaço, Maria Padilha faz topless na praia, a "república de Ipanema" discute Bertolucci...
Pois é, Diego, mas eu me lembro bem de um comentário seu no fcbk de que, quando a conversa "esquenta" as pessoas viram para o outro lado e mudam de assunto. Esse negócio dá muito trabalho. Eu estava no Brasil em junho e participei de manifestações em Campinas e depois em Belo Horizonte e o que eu vi foi bem mais complexo do que esse melodrama com pancadaria entre blacblocks e PMs. Acho que nunca vi uma manifestação mais heterogênea. Esse heterogeneidade não é expressão do tamanho - eu participei dos comícios da Diretas Já e não era assim de jeito nenhum - e ler as pessoas depois berrando na internet que as manifestações eram isso e aquilo outro me deu a impressão de um espetáculo de ventriloquismo mambembe.

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