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Decálogo para enfrentar ano de eleições na internet

Eu não me canso de ficar espantado com a infantilidade do bate-boca [a palavra debate não se aplica aqui] sobre política que se intensifica em ano de eleições. Nem quero discutir o dilúvio de fraudes [fotos montadas, fotos com legendas completamente falsas e associações alucinadas] que vem por aí. Independente dele, o conteúdo do tal bate-boca é digno de uma revista de fofoca e as estratégias retóricas são dignas daquelas intermináveis discussões entre torcedores de futebol de times rivais.
Alguns exemplos:
1. O sujeito que fica indignado quando "acusam" seu candidato de beber demais, mas espalha alegremente que o outro candidato não passa de um "cheirador de cocaína". Pois eu preferiria um presidente pinguço e cheirador de cocaína com uma proposta de governo convincente a mais um abstêmio empunhando uma vassoura moralista [sejamos inventivos: que tal um rodo para "passar o rodo" nos marajás?]. Vem aí uma chuva de preconceitos para os inimigos e um vendaval de indignações de ocasião para os amigos. A "não gosta de mulher", B é "sapatão", C é "papa-óstia", D tem "esposa com cara de piranha", E é uma "frustrada encalhada", F é "um gordinho safado", G tem "cara de marginal favelado", H "não deve saber nem assinar o nome", I é "cabeça-chata", J "não tem classe", L é "playboy", e por aí afora até o Z. A mesma fonte dessas pérolas vai depois com a cara mais limpa do mundo condenar preconceitos contra mulheres, homossexuais, etc.
2. Opiniões alheias são consideradas apenas em função de quem elas favorecem/desfavorecem. Um economista é um imbecil porque criticou o governo e um economista confiável dois meses depois porque apoiou alguma medida do mesmo governo; um cantor é um grande filósofo se diz que não gosta do governo X porque ele é gordo e um filósofo é um petralha imbecil se declara apoio a uma candidatura do PT; a análise política de um jogador de futebol vale muito mais que a de um analista político desde que a opinião do boleiro coincida com a sua.
3. Está aberta também a temporada de associações estapafúrdias: entre a banana que jogaram para o jogador brasileiro e a crise na Venezuela e a cor da camisa do candidato X ou o penteado do candidato Y e a barriga do candidato Z e as eleições na Colombia e o Ibope da novela das oito e a política de saneamento básico e o aquecimento global e a falta de água em São Paulo e a desclassificação da seleção da Suécia para a Copa.
4. No capítulo de associações menos estapafúrdias vigora a lei de dois pesos e duas medidas. Enquanto o candidato que não conta com a sua preferência é acusado de todo o tipo de corrupção com base em associações suspeitas [Abre o olho: o cara cumprimentou o Z com um abraço super-caloroso quando o time deles ganhou o campeonato brasileiro; é claro que os dois estão juntos em tudo], as associações suspeitas do candidato da sua preferência são olimpicamente ignoradas como ossos do ofício para garantir um bem maior [Ei, só porque ele almoça com Z todas as sextas e indicou o primo de Z para o ministério tal, isso não significa que ele tenha alguma coisa com os 769 milhões de dólares falsificados que encontraram na gaveta de cuecas do Z].
5. Quando alguma informação aparece no radar os critérios para interpretá-la são dignos daqueles torcedores apaixonados que questionam aquele penalti em que o zagueiro bateu no atacante com uma barra de ferro como excesso de severidade do juiz. Alguns exemplos:
-Os que estão contra o governo: Subiu o preço do tomate? Culpa do governo. Caiu o preço do tomate? Flutuação do mercado. Para a opinião dos que estão com o governo inverta tudo: Subiu o preço do tomate? Flutuação do mercado. Caiu o preço do tomate? Mérito do governo.
-5% de inflação é um perigo mortal quando você está contra o governo mas é um paraíso quando você está a favor;
-Lucros estratosféricos de instituições financeiras que eram a prova cabal de que o governo passado era do partido de Darth Vader agora são indicadores do sucesso do Brasil;
- O dólar caiu? Ruim para a economia. O dólar subiu? Ruim para a economia. O dólar ficou estável: ruim para a economia. Se uma semana depois o jogo vira são duas as opções: você vira de opinião ou começa a duvidar da confiabilidade das estatísticas.
- 0.001% de crescimento do PIB "está muito bom" se você gosta do governo e se você não gosta é um absurdo; a influência da conjuntura externa que justificou os fracassos do seu time [ops, partido] agora não tem nada a ver com o crescimento; o preço do tomate hoje é um ultraje, amanhã é apenas conjuntural e a falência de 250 pequenas empresas por ano é algo que pode não depender ou depender completamente do governo dependendo de quem está no governo;
6. As esferas de governo também se embaralham ao gosto do freguês: a coleta de lixo vira culpa do governo federal e o tráfico de drogas em escala internacional culpa do governo estadual; se o banqueiro tal se livra de uma sentença no tribunal a culpa é toda do governo federal, os ministros apontados para o STF pelo governo chegaram lá por motivos espúrios ou por mérito e são monstros mancomunados com os políticos ou heróis independentes de capa preta de acordo com cada sentença que proferem se a tal sentença faz com que o candidato X ou Y apareçam melhor. Greve dos professores da rede MUNICIPAL é sinal de desgoverno federal e se a coleta de lixo no seu bairro é uma porcaria vote em Z para presidente que tudo se resolve.
7. Quem perde uma eleição sempre acusa o eleitorado que elegeu o outro candidato de burrice ou de falta de cultura ou informação ou mesmo de venalidade. Milagrosamente quando seu candidato ganha "a voz do povo é a voz de Deus" e elogia-se profusamente a "maturidade" do mesmo eleitorado. Misteriosamente uma horda obtusa de eleitores pés-de-chinelo só entra em ação quando você perde a eleição.
8. Nunca se discutem políticas de governo porque todo o tempo e energia fica ocupado com acusações moralistas: vote em X porque ele não é nem ladrão nem FDP como Y. O moralismo tem duas faces opostas e complementares: seu inimigo é um aprendiz de Darth Vader e seu candidato um novo Buda; X nos levará ao inferno na terra e Y ao paraíso do tal "primeiro mundo". O mundo funciona como uma novela dos anos 80 [faz muito tempo que eu não assisto novela então não quero falar do que eu não conheço]: as pessoas são "malvadas" ou "boazinhas" e o máximo de flexibilidade admite que, de vez em quando, um "malvado" pode virar "bonzinho". E, afinal de contas, tudo o que um presidente precisa para resolver todos os problemas do seu país é uma caneta e a vontade de assinar um decreto decretando o fim da corrupção e da infelicidade e o império da alegria e da justiça, não é mesmo? E se a realidade aponta para políticos de carne e osso sem super-poderes no mundo real, ora bolas, desde quando o entusiasmo de um torcedor de futebol pelo seu time arrefece por causa da realidade?
9. Assim ignoram-se completamente questões relevantes que poderiam até mesmo acabar gerando compromissos interessantes: você pretende sucatear as universidades como o último presidente do seu partido fez? Você pretende comprometer-se a colocar o respeito aos direitos humanos dos povos indígenas em primeiro plano nas suas prioridades? Você vai fazer exatamente o quê, a partir da esfera federal, sobre o problema da segurança pública? Melhor ainda, o que é o problema da segurança pública para você: um problema de polícia ou a polícia é uma grande parte do problema?
10. Ah, enquanto isso ninguém dá a menor pelota para as eleições do congresso nacional, que levam para Brasília uns 250 deputados venais sem os quais ninguém vai conseguir governar. Sim, porque os "Graças a Deus" e "Se Deus permitir" dos candidatos e a falta de disposição dos governantes de enfrentar questões polêmicas para os evangélicos não tem nada a ver com o fato de que os deputados eleitos em cima de uma plataforma especificamente evangélica são mais de 100, não é mesmo?      

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