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"Ao cabo de uns dias, me dei conta de que os costumes e regulamentos dos judeus mal se ajustam a aqueles que foram prescritos por Moisés."
Escrevendo Propostas contra a tradição, um livro em que defendia entre outras coisas que a alma não era imortal, Uriel se meteu numa enrascada não só com a comunidade judia mas com os cristãos também. Acabou preso e, apesar de poder sair com o pagamento de fiança de 300 florins, teve seus livro recolhido e era perseguido na rua por gritos de herege. Chegaram a jogar pedras na sua casa. Atormentado pela perseguição, Uriel decide que é melhor retratar-se publicamente e tornar-se, de certa forma, marrano outra vez, agora confinando seu judaísmo heterodoxo dentro de casa. Um menino, sobrinho que morava em sua casa, denuncia à comunidade que Uriel não segue os preceitos da ortodoxia judaica dentro de casa. A própria família se volta contra ele, um casamento próximo vai por água abaixo e ele perde acesso aos seus bens e dinheiro. À guerra familiar segue-se outra sessão de esculhambação pública:
"... estalou uma guerra pública com os rabinos e o povo, que conceberam novos ódios contra mim e impudicamente me fizeram mil ultrajes, só comparáveis a meu desprezo."
A coisa ainda piora quando ele aconselha dois sonsos [um italiano e um espanhol] que querem se convertem ao judaísmo que "não o fizessem e que, muito pelo contrário, ficassem como estavam: que não sabiam o jugo que iam jogar sobre suas nucas". Os dois o denunciam aos rabinos que dizem a Uriel que ele tem que abjurar suas crenças hereges na frente de todos na sinagoga, depois tomar uma surra de chicote e finalmente prostrar-se no chão para que todos na sinagoga andem por cima dele. Uriel se recusa e é excomungado. Durante sete anos qualquer pessoa da comunidade que cruza com ele na rua cospe na sua cara e ele diz que "lutavam contra mim dois exércitos: um do povo e outro dos meus parentes". Finalmente ele se sujeita ao ritual de penitência pública - que já foi bastante abusada como fonte de anti-semitismo por ninguém menos que Marcelino Menéndez de Pelayo, figura central dos estudos literários na Espanha na segunda metade do século XIX.
Se sujeita, mas publica uma auto-biografia em latim que é um ajuste de contas com o mundo e com si mesmo, cheio de ressentimento e orgulho ferido. Exemplar Humanae Vitae termina proclamando a soberania absoluta do que chama de lei natural, que os mandamentos mosaico apenas repetem, e a fé na liberdade humana de qualquer opressão dogmática. Uriel termina seu livro assim:
"Aqui está a verdadeira história de minha vida; e o personagem que neste vão teatro da vida interpretei ao longo de minha vã e sempre insegura vida e que exibo ante o leitor. Julguem agora corretamente, filhos dos homens, e sem afeto algum, livremente, emitam um juízo verdadeiro. Isto é algo particularmente digno dos homens que realmente merecem esse nome. E se encontrarem algo que os leve à comiseração, reconheçam a miseria humana e a deplorem, posto que dela mesma vocês também participam. Para que nada falte, mi nome, o cristão que tive em Portugal, foi Gabriel da Costa. Entre os judeus, quem dera nunca os houvera encontrado, ligeiramente modificado, fui chamado Uriel."
Uriel/Gabriel da Costa termina sua auto-biografia em 1639 e no ano seguinte se mata em Amsterdam, 16 anos antes da excomunhão de outro marrano insolente, um tal de Baruch/Benedito Espinoza aos 26 anos. Exemplar Humanae Vitae esperaria ainda 47 anos para ser publicado.
Para ler Uriel da Costa a gente tem que se equilibrar entre três posturas bastante diferentes. Num extremo Menéndez Pelayo no raiar do século XX tentando imputar à comunidade judaica de Amsterdam/Hamburgo um comportamento claramente autoritário e vil semelhante ao que se imputa normalmente à Igreja Católica; no meio Ricardo Forster no fim do século XX tentando inventar um mito dos marranos como Derridianos avant la lettre; e no outro extremo José Faur já no século XXI, disposto a fazer de Exemplar Humanae Vitae um panfleto anti-semita escrito/editado por ressentidos que se recusam a sujeitar-se aos rabinos de Amsterdam por estarem infectados de um senso de honra ibérico. Isso para não falar no herói romântico da peça alemã "Uriel Acosta" de Karl Gutzkow - que até vira tio de Baruch Spinoza! Em algum lugar entre esses, principalmente temperando Forster com Faur, está o Uriel/Gabriel que eu encontrei e trouxe para aqui.
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