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Explorando as ligações entre ficção e história em Guimarães Rosa

No Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa lê-se:
"Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso. Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. [...]  – 'Sentei em mesa com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele, paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam respeito.' Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontar isso ele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, todas as pessoas importantes tinham fugido da Januária, desamparadas de poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. – 'Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os Filgueiras...' E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco – era recibo de seis ancorotes com pólvora e uma remessa de iodureto – a assinatura rezava assim: Manoel Tavares de Sá."

Pois quem encontro nos anais do congresso nacional de 1886 – não me perguntem o que eu estava fazendo nos anais de 1886  - se não o próprio Manoel Tavares de Sá, o Neco? Ele é assunto de um acalorado debate entre os deputados Pedro Carneiro e Affonso Celso Jr [esse último meu velho conhecido do Por que me ufano do meu país e de Lupe].

Pedro Carneiro considera as acusações injustas:
Sr. Pedro Carneiro, occupando-se dos acontecimentos occorridos na cidade de Januaria, provincia de Minas, de que tratou o nobre deputado pelo 20° districto da mesma provincia, mostra com documentos que taes occurrencias não tiveram motivo político. Por causa de interesses particulares offendidos, os mandões da localidade, auxiliados pelo juiz de direito da comarca, tem procurado inutilizar ao cidadão Neco.
Expõe a origem dessa questão na perseguição feita ao advogado Landim, que ganhara uma demanda a favor de orphãos. O Sr. Landim foi por isso intimado para abandoner a comarca e como procurasse e obtivesse a protecção de Neco, a fúria dos mandoes voltou-se contra este.
Quanto aos acontecimentos occorridos em 1879 na cidade da Januaria, diz o orador que a responsabilidade delles cabe às autoridades e ao commandante do destacamento, que abandonara a cidade. Isto consta de documentos
officiaes, relatorios dos presidentes da provincia e do ministerio da justiça. Entretanto nenhuma dessas autoridades foi responsabilizada.
[…]
S. Ex., assim como o juiz de direito, deixou-se levar por más informações contra o Sr. Manoel Tavares de Sa Neco, .Pessoa domiciliada no logar, de familia. distincta e que procura ter o bom conceito de seus concidadãos.
O juiz de direito que o accusou em documentos officiaes, é suspeito para julgal-o como magistrado. Até na pronuncia, qua1ifica a Neco de ladrão e de assassino.
De tudo isso resulta que se procura fazer na Januaria um partido hybrido para que prevaleçam os caprichos dos mandões; procura-se por todos os modos quo o Sr. Sá Neco não assuma a chefia do partido conservador. As accusações que lhe razem, não tem outro fim.
Neco será fatalmente condemnado no jury que tern de reunir-se no dia 28.
Assim, o orador pede ao governo que tenha todo o cuidado com a ordem publica na cidade da Januária.

Affonso Celso Jr. retoma a carga:
... o honrado deputado pela Bahia, que teve o mau gosto de estrear hontem patrocinando (sem duvida com a melhor fé
e animado das mais nobres intenções), a causa dos individuos que em 1879 invadiram e saqueararn, praticando toda sorte de re voltantes delictos aquella florescente [aqui Affonso Celso perde um pouco a objetividade e escorrega para o estilo “florescente” de seus livros mais conhecidos] cidade, ameaçada pela segunda vez de ser victimada pela horda de que é capataz o famigerado Neco. [note o uso do termo FAMIGERADO, que tanto incomodou a Damázio dos Siqueiras em certo conto de Primeiras estórias].
[…]
Affonso Celso rebate a acusação de que estaria perseguindo Neco por ser um liberal incorformado com a vitória dos liberais na comarca em 1879 trazendo um artigo do Jornal de Notícias da Bahia assinado por diversos conservadores de Januária em resposta a artigo anterior do próprio Neco.

“que o tal Neco não se achou nunca, não se acha tão pouco agora, nem jamais quererá Deus para o futuro, alistado nas bandeiras conservadoras do municipio onde, é verdade que repellido dos liberaes, pretendeu uma vez
sentar praça de soldado, resultando d'ahi forte scisão, cujo desenlace foi ser excluido e ficar afinal avulso, depois dos acontecimentos de Dezembro de 1879 e dias nefastos, durante os quaes exerceu a mais cruel vingança contra
todos os habitantes do termo, sem escolha de politica, e até contra alguns de seus adeptos pessoaes.” 
Outra carta lida por Affonso Celso em seguida é ainda mais contundente:
“O partido conservador deste município envergonhar-se-ia de ter um membro tão corrupto, tão abjeto como o salteador de Januária, e os abaixo-assinados jamais hombrear-se-iam com o petroleiro e assassino. [o petroleiro aqui é o sujeito que põe fogo nas coisas com petróleo] […] Preferimos abandonar nossos lares, em busca de outros onde haja segurança de vida individual e de propriedade, a unirmo-nos ao salteador que incendiou e roubou nossas casas, e atirou na miseria e orphandade muitas pessoas dessa cidade.
“Achando-se Manoel Tavares de na villa de carinhanha, fizemos-lhe ver que se achava a eleição para o dia 23 de Novembro e que convinha vir elle ajudar-nos; alguns dias depois, soubemos que Manoel Tavares de Sá, o qual esperávamos viesse entender-se os votantes do S. João das Missões, despachava para Chique-Chique o capitão Francisco Rocha Magalhães, para o Úrubu Amancio Paes Landim e para o Rio das Eguas Innocencio Remonte, afim de engajarem criminosos daquelles logares, com promessa de saquearem esta cidade e seu municipio, como o fizeram […] convocando o povo de S. João com as mesmas promessas, e ameaçando queimar a casa daquelles que os não acompanhassem ao saque da cidade.
[…]
Chegados no Carinhanha Francisco Rocha, Landim e Remonte, por antonomazia Mão quitola, com cincoenta e tantos homens, ou, para melhor dizer, com 50 ou mais salteaaores, manda Tavares, vulgo Neco, dizer ao delegado de policia que se acautelasse, que elle viria à Januaria visital-o.
[…]
O Neco tem para mais 600 homens bons atiradores; à tarde estarão aqui, pois vem batendo a minha gente pelo caminho. O único meio quc nos resta é fugir, dissolver a guarnição da cidade e passarmos para o outro lado do rio.”
As autoridades, com alguns negociantes, retiram-se espavoridas, e apezar das instancias dos cidadaos e outros do Brejo para que não se abandonasse a cidade, que se podia bem defender dentro das barricadas feitas para esse fim, não foi possivel convencel-os,  pois só acreditavam no capitão Camillo, que os atraiçoara.
[…]
Assim pois, no dia l do corrente entrou Manoel Tavares na cidade, a frente de setenta e tantos ladrões (todo o povo que tinha), vindos do Chique-Chique, Parateca, Urubu e Rio das Éguas; são estes poucos salteadores que ao capitão Camillo pareciam 600 ! ! !
Dizem uus que elle entregou a cidade por covardia; outros afiançam que elle recebeu 3:000$ para vender a Januaria aos assassinos e petroleiros ! Não sabemos; a verdade apparecerá.

Segue-se uma lista imensa de pessoas e propriedades roubadas pelo bando de Neco.
E vejam bem o fecho:


“À vista da narração exacta dos factos, não podemos deixar de protestar, em nome do partido conservador unido, contra estes salteadores e petroleiros, verdadeiros communistas, com os quaes o partido nada tem de commum.”

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