Adoro a prosa de Marx [pelo menos como a conheço em inglês] acima de tudo pela sua ironia bem humorada, difícil de encontrar quando se trata de um texto prosaico científico. Basta comparar, por exemplo, com o xarope insuportável que é enfrentar um texto qualquer de Derrida para entender a diferença com clareza. Essa ironia é marca do texto marxiano, aqui no sentido do texto advindo diretamente do planeta marx, aquele astro vermelho calmamente assentado numa biblioteca ou na internet, aceitando pacientemente a visita de qualquer terráqueo. É uma ironia, perdoem meu provincianismo brasílico, muito machadiana.
Vejam, por exemplo, essa passagem sobre a mercadoria, que eu traduzi do inglês:
"À primeira vista, uma mercadoria parece algo
muito trivial e facilmente compreendido, até que uma análise atenta revele na verdade algo muito raro, abundante em sutilezas metafísicas e minúcias
teológicas. Como valor em uso, não há mistério algum, seja quando a consideramos como algo capaz de satisfazer as
necessidades humanas, seja quando a consideramos por suas propriedades que derivam do trabalho humano. É claro
como o meio-dia: a indústria do homem dá forma aos materiais fornecidos pela
natureza de forma a torná-los úteis a ele. A madeira, por exemplo, é alterada
quando se faz dela uma mesa. Mas, apesar de tudo isso, quando se apresenta como
mercadoria, ela se transforma em algo transcendente. Não apenas é capaz de plantar
seus pés no chão mas, na sua relação com outras mercadorias, ela também é capaz
de plantar bananeira e evoluir para além das ideias grotescas contidas em seu
cérebro de madeira para algo mais maravilhoso do que qualquer virada de mesa
que já se viu."*
Fico com vontade de fingir que o texto acima é assinado por um barbudo de pele escura [o apelido de Marx, por seu cabelo e cor de pele, era justamente "mouro"] de nome Marxado de Assis, com uma vida dupla de estudioso da economia e escritor de prosa narrativa. Vejam que Marxado depois de escrever sobre os finos mistérios da mercadoria resolve escrever sobre as sutilezas do ceticismo como forma de superficialidade num certo personagem de nome Camilo:
"Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um
arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou
só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos,
envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não
acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento:
limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não
formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os
ombros, e foi andando."
Veja se não se aplica com perfeição a esse meu monstro teuto-carioca o que nos diz sobre o tal Machado de Assis o famoso marxista periférico austríaco-paulistano Roberto Schwartz:
"... considere-se que as idéias da
burguesia, a princípio voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 se haviam
tornado apologética: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a
universalidade disfarça antagonismos de classe. Portanto, para bem lhe reter o
timbre ideológico é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco
também quando usado propriamente. Note-se, de passagem, que este padrão iria
repetir-se no séc. XX, quando por várias vezes juramos, crentes de nossa
modernidade, segundo as ideologias mais rotas da cena mundial. Para a
literatura, como veremos, resulta daí um labirinto singular, uma espécie de oco
dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre."
*Cá está o original em inglês: "A commodity appears, at first sight, a very
trivial thing, and easily understood. Its analysis shows that it is, in
reality, a very queer thing, abounding in metaphysical subtleties and
theological niceties. So far as it is a value in use, there is nothing
mysterious about it, whether we consider it from the point of view that by its
properties it is capable of satisfying human wants, or from the point that
those properties are the product of human labour. It is as clear as noon-day,
that man, by his industry, changes the forms of the materials furnished by
Nature, in such a way as to make them useful to him. The form of wood, for
instance, is altered, by making a table out of it. Yet, for all that, the table
continues to be that common, every-day thing, wood. But, so soon as it steps
forth as a commodity, it is changed into something transcendent. It not only
stands with its feet on the ground, but, in relation to all other commodities,
it stands on its head, and evolves out of its wooden brain grotesque ideas, far
more wonderful than “table-turning” ever was."
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