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Sobre a parte do meu trabalho que eu amo - Parte 1

Alguém escuta um mito de índios Kayapó sobre a conquista do fogo. Esse alguém possivelmente transcreve o mito na língua original e logo traduz, provavelmente para a sua língua nativa [no caso o inglês]. Ainda não está claro para mim se esse alguém - Horace Banner - era um antropólogo ou um missionário. Seu livro tem um nome muito estranho - a princípio que tinha feito um erro na transcrição do título: On the trail of the Three Freds.

Um antropólogo francês muito famoso traduz então esse mito Kayapó, entre outros coletados por várias pessoas diferentes. Provavelmente o antropólogo traduz o tal mito do inglês, talvez corroborando com o texto original, mas provavelmente não. Há uma chance de ele ter travado contato com o tal mito em português, já que Banner publicou os mitos que coletou em português em revistas acadêmicas em 1957 e 1961 - o livro do antropólogo francês é de 1964. Além disso o que o antropólogo francês faz no seu livro não se trata propriamente de uma tradução, mas apenas de uma versão resumida.

O livro do antropólogo francês se transforma em um clássico traduzido em inúmeras línguas. Assim o mito é traduzido de volta para o inglês além de outras línguas, entre elas o português.

Muito provavelmente pelo livro do antropólogo francês uma crítica literária brasileira chega ao mito Kayapó, que lhe chama a atenção como possível chave de uma leitura de um famoso [e difícil] conto de Guimarães Rosa. Traduzido nesse famoso estudo dessa crítica literária sobre Guimarães Rosa, o tal mito Kayapó volta ao português.

Sentado na frente do computador chego facilmente à versão em português [traduzida do antropólogo inglês] e também chego facilmente à versão em inglês do mito transcrito para o francês do antropólogo francês.  

Qualquer pessoa que já tenha brincado de telefone sem fio, sabe que essa zona deve ter dado em vários tipos de confusão. Mesmo com todas as hipóteses otimistas que eu elaborei aí em cima, de que o inglês transcreveu tudo direitinho na língua dos Kayapós antes de traduzir para o inglês e que o francês corroborou sua tradução do inglês com o original. A versão "original" em Kayapó já teria sido uma transcrição feita pelo tal inglês de uma versão oral que um interlocutor.

Nesse ponto o estudo do antropólogo francês já era bem ilustrativo: não há original senão uma penca de variações sobre uma penca de motivos e uma mesma base: onça > fogo > índio. O fogo permitindo a transição do cru ao cozinhado, a transição de um estado natural para um estado cultural. Levi- Strauss num momento memorável diz que o mito pensa através daqueles que o contam, com ou sem consciência dos seus significados. A forma não é superfície, é esqueleto, estrutura vários corpos que têm lá as suas diferenças mas compartilham algo fundamental.

Ainda em inglês saio em busca do livro de título curioso do tal inglês, Horace Banner, de 1939. Descobri aliás que ele é o primeiro de dois livros em que Banner conta [suponho sua viagem]. Ano que vem estarei com o livro dele aqui em mãos.

Me contento hoje com uma antologia fantástica de contos dos índios Gê, feita em 1978 na UCLA. Nela descubro todas as versões que constam no livro do antropólogo famoso e um par [são todas variações sobre o mesmo tema] que não constam do livro do antropólogo francês. Elas, como as do inglês, foram publicadas ainda nos anos 50 no Brasil em português, em revistas científicas brasileiras.

A aventura promete. Algumas não conto aqui para não estragar.

De volta à casa depois de um dia de detetive de biblioteca, decido contar de memória a história do rapaz que rouba o fogo da onça para o meu filho que faz dela uma história em quadrinhos, em inglês.

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