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Hilda Hilst arrebentando tudo entre bonecas, raparigas, moças, mademoiselles

Bellmer, "Boneca"
Trajetória Poética do Ser - Passeio
Hilda Hilst

1
Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes

Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.
Cartier Bresson, "Calle Cuauhtemoctzin"
“Tocaram-me sim, meu pai tu me tocaste, a ponta dos dedos sobre as linhas da mão,_ o dedo médio sobre a linha da vida, dizias Agda, três noites de amor apenas, três noites tu me darás e depois apertaste o meu pulso e depois olhaste para o muro e ao nosso lado as velhas cochichavam filhad ele sim a cabeça é igual, os olhinhos também, bonita filha toda branca… Meu pai, o banco de cimento, os mosaicos, as seringueiras, os enfermeiros afastados. Sorriam. Eu digo: sou eu, Agda, a mãe não veio mas te manda saudades, sou eu, Agda, Agda, pai, ela virá, se não veio é porque não passou bem todos esses dias, sou eu, tua filha.”
"Agda" de Kadosh, Hilda Hilst
Di Cavalcanti, "Cinco Moças de Guaratinguetá"
Picasso, "Mademoiselles d'Avignon"




















"Cavo. Constância. Fundura de dez braçadas. De quanto? Caracóis. Lodo na cara. Tenho ares de alguém semisepulto. Um ouro que não vem. Nem o reflexo. Bom que seria a luz amarelada dourando os caracóis, as larvas, a minha mão. Bom que seria recompor palavras, cruzá-las, dizer da luz filtro cintilante facetado, dizer do escuro entranha apenas, dizer da busca o que ela é, buscador e buscado, revelar os dois lados, aqui te vês, aqui sou eu te vendo, a órbita gozosa estilhaçando medos, aqui quando eras criança sobre a murada, escondendo a cara, luz te crestando a pupila, pálpebra violeta se encolhendo, braço antebraço vértice do cotovelo apontando aquela que te fotografa. Quem te fotografa?" 
"Agda" de Kadosh, Hilda Hilst

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