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Postal




Foto minha: Toco de Ferro


O sol tinha acabado de nascer quando sentiu a dor pontual, aguda, intolerável. Logo em seguida o coração parou, e parecia-lhe um alívio, uma oportunidade de escape, que durou um instante só. A dor agora voltava ainda intensa, mas suportável. Num estalo atravessou o inferno da dor aguda até o purgatório da dor crônica e recostou-se no sofá do escritório, onde esperou paciente pela morte que não veio.
Meu coração se agarra ao corpo, ao tempo. Cansado de bater na porta aberta, prepara-se para o salto, o relâmpago, o silêncio, o hiato.
A filha entrou sem bater, tinha as chaves da casa. O sol tinha acabado de se esconder atrás do telhado do vizinho.
- Pai?
Não conseguia responder. Esperou mudo, recostado feito um manequim desajeitado no sofá, até que ela chegasse ao escritório. A filha a princípio não percebeu o estado em que estava.
- Pai, a Lydia me pediu pra – Pai?! Tudo bem?
Ele quer falar mas não consegue nem um sussurro. Acho que peguei no sono deitado de mau jeito, minha filha. Agora estou com um torcicolo que não consigo me levantar. Não há de ser nada. Queria poder mentir para não acabar num hospital todo enfiado com agulhas, fios e tubos, como tantos que ele viu pelo vidro morrendo devagar na assepsia descolorida da UTI.
A filha chamou a ambulância pelo telefone.
A morte, essa não existência factual, é a coisa mais terrível que há. Agarrá-la firme com as duas mãos na altura do rosto exige do espírito humano mais coragem que qualquer outra coisa. Mas às vezes isso acontece simplesmente porque não há saída. Uma vida que se encolhe toda só para evitar ser tocada pela morte chega ao limite do encolhimento e aí explode. Explode ou então não merece o nome que tem.
Antes do fim, ainda na ambulância, lembrou-se da resposta do seu pai quando ele comentou sobre os surtos de paranoia que pareciam acometer Arturo Horta:
- Olha, se eu fosse ele também tinha medo da própria sombra.
- Pois toma tento e espera; acaba que o tempo passa e reduz cada um ao que cada um é: o matão poderoso de hoje é um matinho de beira de estrada amanhã. Toma tento e espera, meu filho, porque o tempo não para pra ninguém.



Comments

Gostei. E essa coisa de se encolher até explodir já foi tema de muitos textos meus. Gostei mesmo. Terminou com reticências. É parte da ideia de final do texto ou é sinal de que tem mais guardado pra postar depois?
(tata)
Anonymous said…
Tem mais, Tata, mas eu não sei se posto ou não. Que bom que você gostou. É o começo [provável] de um texto mais longo. Não sei bem.

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