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O sotaque estrangeiro, veículo escabroso, de um certo Karl transformado em Carlos

O jovem posando de explorador no estúdio
No dia 17 de julho de 1888, “Carlos" von den Steinen deu conferência sobre sua viagem ao Xingu na sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, na presença da princesa Isabel e seu marido. Já coloquei aqui alguns outros trechos que me chamaram a atenção nessa conferência. Volta a ela com outros dois trechos dignos de nota. 

O primeiro deles fala sobre a amizade entre e sobre o choro:

“Em Cuyabá zombaram muito de mim em consequencia do qua elles chamavam a minha amizade com os selvagens.’

Já nem tão jovem
Aceito este termo de muito bom grado. Então eu não devia chamar de amigos meus áquelles que nos forneceram comida quando ficamos desprovidos de tudo, áquelles que nos guiaram a salvamento pelas cachoeiras as mais perigosas, áquelles que na nossa volta nos acompanharam todo o rio abaixo, com lagrimas nos seus olhos quando fizemos nossas despedidas? O indio não sómente ri, elle chora tambem ás vezes.”


O segundo trecho é aquele que encerra a conferência com uma denúncia e uma declaração de esperança cautelosa feita na presença daqueles que, supunham todos naquele momento, em breve ocupariam posições centrais no Brasil imperial:

“Um sem numero dos seus irmãos ficou anniquilado por duas especies de barbarismos criados alias por nossa raça de mais nobre categoria: uma a guerra feroz, a outra a especulação sordida.

O jovem casal de herdeiros do trono
Não será facil escolher o caminho mais recto. Mas é de esperar que a mão benigna que libertou da escravidão
os descendentes da Africa, tenha tambem o poder sufficiente de proteger os naturaes deste continente e bem assim bastante clemencia para educar estes brazileiros que são mais senhores da sua sorte e isto mesmo ignoram.
Agradeço finalmente a VV. AA. Imperiaes e a esta distincta assemblea a paciencia que tiveram durante tanto
tempo acompanhando-me no vehiculo escabroso do meu sotaque estrangeiro.”


O casal, agora de velhinhos
Adoro a expressão divertida com que o palestrante busca a simpatia dos seus ouvintes criticando a si mesmo, falando do “veículo escabroso do meu sotaque estrangeiro.” O inteligente orador busca explorar o orgulho de líderes que haviam há pouco posto um ponto final na escravidão no Brasil, relacionando o respeito pela liberdade e humanidade dos descendentes de africanos e africanos no Brazil à dignidade e respeito pelos indígenas. 

Também penso melancólico sobre esse primeiro contato no Xingu, imaginando que a tal “mão benigna” do Império seria substituída pela da República em pouco mais de um ano e que de benigna as duas mãos tinham muito pouco. Primeira e Segunda República, Estado Novo, Ditadura Militar, e uma meia dúzia de constituições cheias de intenções benignas e na prática continuamos, como coletividade cultural e como estado nacional, aniquilando com as mesmas duas espécies de barbarismos os povos indígenas. 

Às vezes tenho a impressão de que 1888 se passou o ano passado.  

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