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Machado ainda afiado mesmo com leitor cego?

Quando eu morava no Brasil, nós tínhamos um grupo de leitura em casa que se reunia toda as segundas à noite lá em casa para ler um conto não muito longo, para ler em voz alta de uma vez só e dar tempo de conversar depois. Os contos podiam ser trazidos por uma pessoa, mas também lemos dois livros inteiros [os Cem Melhores Contos e o Tutaméia] assim, conto a conto meses a fio.
Fiquei espantado quando lemos "Pai contra Mãe" de Machado de Assis e uma das pessoas achou que Machado não via com maus olhos a instituição da escravidão. O conto começa com uma espécie de prólogo:

"A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem."

Será que a ironia é uma faca assim tão estranha, que só corta dependendo de quem segura o cabo?

Comments

Anonymous said…
Resolveu me cutucar por que tem muito tempo que eu não faço comentários aqui?
Eu também lembro muito bem dessa conversa e vou me defender.
O Vander informou a todos nós que, para a crítica, Machado era considerado um escritor amigo do poder que nunca se engajava em qualquer tipo de causa ou contestação social. Ele tomou esse texto como prova de que a crítica estava errada por que, nele, Machado fala abertamante (ainda que de forma irônica) contra a escravidão.
Eu observei que o conto tinha sido escrito, no mínimo 13 anos depois do fim da escravidão e 12 da proclamação da república. O sistema escravagista era, então, cachorro mais que morto e quem o criticava talvez pudesse até mesmo ser visto com bons olhos pelo poder vigente naquele início do sec. XX. Portanto, apesar de,neste conto, Machado fazer duras críticas à escravidão, ele não mostra aí nenhum caráter contestador ou engajado em qualquer causa que seja.
E veja bem: para mim isso não é problema nenhum. Um artista do calibre de Machado de Assis não precisa se justificar por nenhuma causa, ideologia ou qualquer coisa fora da sua própria obra.
Quanto a essa história de "leitor cego"... Deixa de ser sacana!
Fred, a carapuça serviu, mas não era em vc que eu estava pensando... E não vou dar nome aos bois porque seria indelicadeza da minha parte.
De qualquer maneira, foi bom "ouvir a sua voz" de novo!
Anonymous said…
Bom... Acho que, talvez, eu não me lembre assim tão bem daquela conversa, afinal.
De qualquer maneira, tenho saudades e boas lembranças daqueles encontros na sua casa. E apesar de não ter feito muitos comentários ultimamente, passo por aqui quase todos os dias. Sou um dos seus leitores fieis.
Abração.
Acho que Machado não é 100% irônico - ele não está só fazendo piada, mas há algo sofrido também. Ele dá vários motivos para explicar quem se mete em tal ofício. Alguns são bem tristes.
Pois é, Sabina, acho que esse é daqueles contos em que a tese da indiferença do Machado cai por terra [e vc sabe que não estou dizendo nada novo]. Mas acho que essa discussão pode ser muito mais difícil com outros contos, com outros momentos da literatura do Machado - e falo disso não para uma leitura entre especialistas, mas uma leitura com pessoas não especializadas, um debate que eu sempre prezei porque tenho horror de viver numa torre de marfim de ilustrados. E isso involve ter que falar, como você disse no seu post de hoje, como se estivéssemos nos anos 50 - acho que o passado é menos passado do que a gente pensa. O meu post tem a ver com um debate antigo sobre a ambiguidade e ironia [valores que a nossa estética moderna venera] como uma faca que não corta sem a ajuda decisiva do leitor.
O curso sobre Machado que fiz na FFLCH foi ótimo, e dava pra perceber como a abordagem dos alunos de pós ainda é uma bagunça cronológica, digamos assim. Há uma linha de estudos do "Machado místico" que parece saída do ocultismo. Há o Machado filosófico, o Machado engajado, cada um tem seu Machado preferido, rs.

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